Alicerces da Fé Cristã



ÍNDICE

1.Uma Nota Sobre o Primeiro Artigo do Credo dos Apóstolos
2.Um Evangelho que Devemos Conhecer e Tornar Conhecido
3.A Morte de Uma Igreja
4.Deus, Você e a Igreja
5.A Glória de Deus no Chamado para Pregar às Nações
6.Quão Firme Fundamento! 
7.O Fundamento da Igreja e a Fé
8.Missões e Sofrimento
9.O Fundamento da Igreja e a Fé





1. Uma Nota Sobre o Primeiro Artigo do Credo dos Apóstolos
Jonas Madureira 14 de Janeiro de 2013 - Teologia
"No Credo dos Apóstolos se enumera sucintamente e em ordem precisa toda a história de nossa fé. Nele nada há que não esteja calcado em sólidos testemunhos da Escritura." João Calvino
"Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra." Assim reza o primeiro artigo do Credo dos Apóstolos. É bastante peculiar que um dos símbolos mais significativos da fé cristã comece com uma confissão de que Deus é Pai. Isso, em princípio, pode não parecer uma peculiaridade, uma vez que outras religiões também chamam suas divindades de pai. Contudo, uma leitura mais atenta do contexto e do significado dessa confissão revelará que tal declaração — que reconhece Deus como Pai — não é apenas significativa para os cristãos, mas acima de tudo exclusiva a eles.
Sem dúvida, outras religiões também chamam suas divindades de pai, porém não da mesma forma como os cristãos chamam Deus de Pai. Para os cristãos, a doutrina da Trindade sempre está nas entrelinhas da confissão de Deus como Pai. A razão disso se deve ao fato de que, antes de Deus ser o nosso pai celestial (Mt 6.9; Ef 4.6), ele é o Pai de Jesus Cristo (Mt 26.26; Ef 1.3). Nesse caso, ao confessar que Deus é Pai, o cristão inevitavelmente traz à memória a bondade e o amor de Deus que entregou o seu único Filho, o "unigênito do Pai" (Jo 1.14), para que todo aquele que crê no Filho não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16). Portanto, quando os cristãos chamam Deus de Pai, eles não estão se referindo apenas à imagem de Deus como um pai celestial, mas principalmente à imagem trinitária de Deus, ou seja, a imagem do Pai de Jesus Cristo que, em favor da humanidade, entregou o seu único Filho, num ato de suprema bondade e incomparável amor. 1
Em outras palavras, ao começar a confissão dessa forma, o cristão pressupõe não apenas a bondade do pai celestial, mas acima de tudo a incomparável e suprema bondade do Pai de Jesus Cristo. A intenção do cristão é expressar que, antes de tudo, ele concebe Deus como o summum bonum, isto é, como a bondade suprema que nenhuma criatura é e jamais será capaz de ser. 2 E isso, diga-se de passagem, é confirmado pelo próprio Jesus, quando diz que "Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus" (Mc 10.18). Entretanto, o Credo é ainda mais preciso, uma vez que não pressupõe apenas a bondade suprema, mas também o poder absoluto de Deus. Afinal, não podemos esquecer que a confissão do cristão se dirige ao Deus Pai que é, ao mesmo tempo, todo-poderoso, criador do céu e da terra. Ou seja, o Credo não confessa apenas a suprema bondade de Deus, mas também o seu absoluto poder como criador de todas as coisas (Gn 1.1; Sl 19.1-6; At 17.22-31; Rm 1.18-23).
Assim como a confissão de Deus como Pai reflete a doutrina da Trindade, a confissão de Deus como todo-poderoso reflete a doutrina da Criação, tal como foi herdada da fé judaica. A doutrina da Criação parte do pressuposto de que tudo o que existe deve sua existência a um ser de grandeza máxima: Deus. Uma vez que, por definição, um ser de grandeza máxima é onipotente, então, nada de concreto pode existir independente do seu poder criativo. 3 Em seu famoso ensaio Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart [O Credo: interpretado e respondido à luz das questões de hoje], Wolfhart Pannenberg elucidou, de forma precisa, o reflexo da doutrina da Criação na confissão de Deus como todo-poderoso. Em suas palavras:
Para ser preciso, nas versões gregas primitivas do Credo dos Apóstolos, a confissão Deus todo-poderoso se expressa por meio do título grego Pantokrator, Senhor de tudo [Allherr], termo também empregado ocasionalmente em referência a deuses gregos, como Hermes. No entanto, muito tempo antes, o termo se tornou familiar à tradição judaica e cristã, através da tradução grega do Antigo Testamento, na qual a junção Kyrios Pantokrator era usada como tradução para Yahweh Sabaoth, um dos nomes veterotestamentários de Deus. Ademais, tal tradução mostra, mais uma vez, o quanto o poder absoluto de Yahweh permanecia no centro da fé judaica. Portanto, a menção Deus todo-poderoso no Credo dos Apóstolos confirma ainda mais a identidade do Deus da fé cristã com o Deus de Israel. O fato de nada lhe ser impossível foi mostrado de forma renovada aos cristãos, por meio da ressurreição de Jesus dentre os mortos (cf. Rm 4.24). Entretanto, também está presente na confissão Deus todo-poderoso a noção de Deus como criador de todas as coisas. Quando a confissão credal Deus todo-poderoso, "Senhor de tudo", foi mais bem elucidada pela adição da referência explícita à criação do mundo, tal fato, portanto, não passou de mera expressão daquilo que já estava presente na noção de Deus como todo-poderoso. Se Deus é, de fato, todo-poderoso, não apenas o mundo visível, a terra, mas também o mundo invisível, o céu, são obra de suas mãos. 4
Portanto, ao confessar Deus Pai todo-poderoso, o cristão afirma a unidade que há entre o conceito trinitário de Deus Pai e o conceito cósmico de Deus todo-poderoso, o Criador do céu e da terra. Dessa forma, professa-se a crença não apenas na existência de Deus, mas sobretudo na existência de Deus como absolutamente bondoso e onipotente. Isso não é pouca coisa, pois, para o cristão, a confissão Deus Pai todo-poderoso expressa duas realidades divinas que jamais devem ser disjuntivas, isto é, a crença cristã em Deus não admite que essas duas realidades constituam uma relação do tipo "ou-ou" - ou Deus é todo-bondoso ou é todo-poderoso. Pelo contrário, a relação é conjuntiva, ou seja, uma relação do tipo "tanto-quanto" - Deus é todo-bondoso tanto quanto todo-poderoso. Isso significa que toda a tentativa de fundamentar a crença em Deus que privilegie um conceito em detrimento do outro será qualquer crença menos uma crença cristã.
A crença em Deus Pai todo-poderoso é precisamente a confissão da unidade que há entre a bondade suprema e o poder absoluto de Deus. Sem dúvida, são realidades distintas, porém inseparáveis na crença cristã. Vale a pena enfatizar que, em nenhum momento, estamos dizendo que ambas as realidades são indiscerníveis. Pelo contrário, é óbvio que são discerníveis, mas isso não quer dizer que sejam separáveis. Ora, no mundo existem coisas que são assim, ou seja, que são discerníveis, mas que nem por isso devem ser separadas. Da mesma forma que existem coisas que são discerníveis e separáveis - como um galho que tanto é distinto de uma árvore como pode ser separado dela - também existem coisas que são discerníveis e inseparáveis - como é o caso, por exemplo, da cor vermelha que, embora seja discernível, não pode ser separada da maçã vermelha. Logo, existem coisas que são discerníveis embora sejam inseparáveis. Esse é o caso da crença cristã. Podemos discernir a bondade suprema de Deus do poder absoluto de Deus, porém não podemos separar a bondade suprema de Deus do poder absoluto de Deus.
É justamente por causa da inseparabilidade que há entre a bondade suprema e o poder absoluto de Deus que o problema do mal se impõe como uma questão demasiado espinhosa, tanto para o cristianismo como para qualquer outra religião que sustente a crença básica em um Deus todo-bondoso tanto quanto todo-poderoso. Vejamos a razão disso a partir de uma versão da formulação clássica do problema do mal, que foi atribuída a Epicuro (341-270 a.C.) por Lactâncio, um famoso apologista cristão que viveu aproximadamente entre 260-320 d.C.:
De acordo com Epicuro, ou Deus deseja remover o mal e não é capaz; ou ele é capaz e não deseja; ou ainda não deseja nem é capaz; ou então tanto deseja quanto é capaz. Se desejar e não for capaz, deve ser fraco, o que não pode ser afirmado sobre Deus; se for capaz e não desejar, deve ser malévolo, o que também é contrário à natureza de Deus; se não deseja nem é capaz, deve ser tanto malévolo quanto impotente, e consequentemente não pode ser Deus; agora, se tanto deseja quanto é capaz  - a única possibilidade compatível com a natureza de Deus - então de onde vem o mal? [De Ira Dei, XIII] 5

OPÇÕES DE EPICURO

IMPLICAÇÕES
1. Ou Deus deseja eliminar o mal, mas não pode.
    Deus é fraco.
2. Ou Deus é capaz de eliminar o mal, mas não deseja eliminá-lo.
Deus é malévolo.
3. Ou Deus nem deseja e nem é capaz de eliminar o mal.
Deus é malévolo e fraco.
4. Ou Deus deseja e é capaz de eliminar o mal.
Deus é bondoso e poderoso.
De acordo com essa versão de Lactâncio, vemos que Epicuro enumerou quatro opções e suas respectivas implicações quanto ao problema do mal:
A partir do que já foi dito, é óbvio que, de todas as quatro opções, apenas a quarta opção é compatível com a crença cristã. No entanto, é justamente a quarta opção que coloca o cristão diante de uma questão difícil. Afinal, um ser todo-bondoso não desejaria que acontecessem coisas más, que crianças desenvolvessem leucemia, que terremotos fizessem edifícios desabarem sobre pessoas ou que terroristas jogassem bombas em escolas repletas de crianças. Em vez disso, desejaria impedir que tais males acontecessem, se pudesse fazê-lo. Como o Deus do cristão não é apenas todo-bondoso, mas também todo-poderoso, logo, é óbvio que ele pode impedir que tais males aconteçam. Mas o fato é que eles acontecem. Então, como compreender que seja todo-bondoso um Deus que sendo também todo-poderoso permite que tais males aconteçam?
Não precisamos gastar páginas e páginas para convencer o leitor de que o problema do mal é, para os cristãos, um "exercício de fé". 6 O problema toca em questões muito difíceis, que estão relacionadas não apenas com a nossa inteligência, mas também com o nosso sentimento religioso. Nas palavras do filósofo Alvin Plantinga:
O Credo dos Apóstolos começa assim: "Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra...". Quem repete essas palavras e leva a sério o que elas dizem não está apenas confessando o fato de aceitar que uma dada proposição é verdadeira; algo muito mais forte do que isso está em jogo. A crença em Deus significa confiar em Deus, aceitá-lo, entregar-lhe a nossa vida. Para o crente, o mundo inteiro parece diferente. (...) O universo inteiro assume para ele um aspecto pessoal; a verdade fundamental sobre a realidade é a verdade sobre uma pessoa. Assim, acreditar em Deus é mais do que aceitar a proposição de que Deus existe. Mesmo assim, inclui pelo menos isso. Não faz muito sentido acreditar em Deus e agradecer-lhe pelas montanhas sem acreditar que há tal pessoa a quem agradecer, e que ela é de algum modo responsável pelas montanhas. Nem podemos confiar em Deus e entregar-nos a ele sem crer que ele existe: "é necessário que quem se aproxima de Deus creia que ele existe e recompensa os que o buscam" (Hb 11.6). 7
Ora, por que o dilema de Epicuro é, para os cristãos, um exercício de fé? Em primeiro lugar, porque os cristãos acreditam justamente em um Deus todo-bondoso tanto quanto todo-poderoso. Em segundo lugar, porque, quando se fala da crença em Deus, não se fala apenas de uma postura intelectual ativa, mas sobretudo de uma postura intelectual passiva. Por exemplo, para acreditar que "o todo é maior do que as partes", que "a menor distância entre dois pontos é uma reta" ou que "2+2=4" basta a compreensão do que significam essas proposições (uma postura intelectual ativa). Veja, tanto um ateu como um crente podem conhecer e acreditar nessas mesmas verdades. Para acreditar que, em um triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa basta uma postura intelectual ativa. A mesma coisa não pode ser dita da crença cristã na existência de Deus. Para a crença no teorema de Pitágoras é suficiente uma postura intelectual ativa (mera compreensão). Todavia, para a crença em Deus se requer bem mais do que uma postura intelectual ativa (a compreensão de que Deus é Pai e, ao mesmo tempo, todo-poderoso). O que se requer é o que chamamos de uma postura intelectual passiva, pois, antes de confessar Deus Pai todo-poderoso, o cristão é primeiro afetado pelo poder do Espírito que, através da palavra de Deus, o compele a acreditar que toda a sua vida, bem como todas as coisas à sua volta, enfim, tudo está nas mãos de um Deus bondoso e onipotente.  Como se trata de uma crença que determina a "cosmovisão" (Weltanschauung) de uma pessoa, então, é natural que não apenas a inteligência, mas sobretudo o modus vivendi do cristão sejam determinados por essa crença. Entretanto, aquele que confessa a fé cristã não apenas professa e assume uma cosmovisão, mas vive em função dela. Isso só pode ser assim porque a crença cristã não é um produto das faculdades intelectuais, ou seja, não é o resultado de uma mera atitude mental. Ela é, antes de tudo, fruto do impacto da palavra de Deus que, como disse Herman Dooyeweerd, pode ser explicado apenas pelo Espírito Santo, o qual abre nosso coração, de forma que nossa crença não é mais uma mera aceitação dos artigos da fé cristã, mas uma crença viva, instrumental para a operação central da palavra de Deus no coração, o centro religioso de nossa vida. 8
Ou como disse Agostinho de Hipona:
Amo-te, Senhor, e minha consciência não duvida e nem vacila. Feriste-me o coração com a tua palavra, e desde então te amei (Confissões, X, 6, 8).
A crença do cristão em um Deus bondoso e onipotente não é fruto de pura intelecção, mas sobretudo da ação interna do Espírito 9 que impulsiona o cristão a crer em Deus dessa forma. Portanto, uma solução para o problema do mal que implique a dissolução ou a disjunção da crença em Deus Pai todo-poderoso não convence o cristão que aderiu a essa crença não apenas por uma operação do seu intelecto, mas sobretudo pelo impacto da palavra de Deus, através do poder iluminador do Espírito. É o poder do Espírito que por meio da palavra de Deus convence o cristão de que Deus é todo-bondoso tanto quanto todo-poderoso. Por isso, não é uma boa estratégia tentar modificar a crença cristã para torná-la mais palatável diante do problema do mal — até porque Epicuro já mostrou que tais modificações pioram ainda mais as coisas. Além do mais, modificar a crença cristã para eliminar as dificuldades do problema do mal não é apenas uma péssima estratégia, mas acima de tudo um sinal de desonestidade intelectual.
Para o cristão, faz sentido crer que o Criador do céu e da terra seja todo-poderoso. Entretanto, não basta que o Criador mantenha apenas uma relação de poder com as obras de suas mãos. O cristão professa que o Deus que cria todas as coisas deseja também uma relação amorosa com a sua criação. Aquele que foi impactado pela palavra de Deus não consegue separar, na sua crença, a bondade suprema e o poder absoluto de Deus. E exatamente porque não consegue separar ambas as realidades que o cristão se depara com a dificuldade de entender a origem do mal:
Mas de novo dizia: "Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas bom, mas o próprio bem? Donde me vem então o querer o mal e o não querer o bem? Será para haver um motivo para que eu seja castigado justamente? Quem colocou isto em mim, e plantou em mim este viveiro de amargura, embora todo eu tenha sido feito por um Deus tão doce? Se o autor é o diabo, donde veio o mesmo diabo? Mas se também ele, por uma vontade perversa, de anjo bom se tornou diabo, donde lhe veio, também a ele, a má vontade pela qual se tornaria diabo, quando o anjo, na sua totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente bom?". De novo me deixava abater e sufocar com estes pensamentos, mas não me deixava arrastar até àquele inferno do erro, onde ninguém te confessa, quando se julga que és tu a padecer o mal, e não o homem que o pratica. 10
Em vez de adotar uma postura cínica e simplista, que passa a régua e diz "Não há dificuldade alguma! A crença em Deus é tão simples. Os teólogos e filósofos é que complicam!", o cristão precisa encarar com seriedade as dificuldades que o problema do mal impõe. 11 Por outro lado, soluções escapistas e demasiado retóricas, que sacrificam ou a bondade ou a onipotência divina, são insuficientes para quem foi "ferido pela palavra de Deus" (Agostinho). Qualquer solução que, diante do problema do mal, abra mão da bondade divina em favor da onipotência de Deus é tão desastrosa quanto é a solução que abre mão da onipotência divina em favor da bondade de Deus. A solução que condiz com a crença cristã é aquela que, a despeito do mal, sustenta a crença em Deus Pai todo-poderoso. Mesmo porque somente a crença em Deus pai todo-poderoso pode dar para o cristão a esperança na vitória sobre o mal, no triunfo do Bem, no Dia do Senhor, na consumação escatológica. Mas isso é matéria para outra nota.
1 - Sobre a noção de Deus Pai como primeira pessoa da Trindade, bem como a estrutura trinitária do Credo dos Apóstolos, cf. J. N. D. Kelly. Early Christian Creeds. London: Longman, 1972, especialmente os capítulos 12 e 13.
2 - "É que nenhuma alma alguma vez pôde ou poderá conceber alguma coisa que seja melhor do que tu, que és o supremo e o melhor bem [qui summum et optimum bonum es]." Santo Agostinho. Confissões. Lisboa: INCM, 2004, p. 273 (VII, 4, 6).
3 - Cf. William L. Craig. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 181.
4 - Wolfhart Pannenberg. Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Mohn, 1982, p. 38-39. Veja também Franklin Ferreira. Teologia cristã: uma introdução à sistematização das doutrinas. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 74-82.
5 - Apud Pierre Bayle. Historical and critical dictionary. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1965, p. 169.
6 - Em uma conversa que tive com Franklin Ferreira, ele me disse algo bastante esclarecedor, e que reproduzo a seguir com a sua anuência: "Se, para o cristão, o problema do mal é a oportunidade do exercício da fé, em contrapartida, para o incrédulo, o problema do mal é demasiado constrangedor, na medida em que suas opções são: (1) ou a negação da existência de Deus (que reduz o mal à mera percepção humana, relativizando-o); (2) ou o panteísmo (que nega a existência do mal); (3) ou o dualismo (que sugere que o bem e o mal são equivalentes). Entendo que o problema do mal não é um dilema para o cristão, mas um exercício de fé, na medida em que esperamos o triunfo do Bem, no Dia do Senhor, na consumação escatológica."
7 - Alvin Plantinga. God, Freedom, and Evil. Grand Rapids, Cambridge: Eerdmans, 1974, p. 2.
8 - Herman Dooyeweerd. No crepúsculo do pensamento. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 255.
9 - João Calvino designa essa ação do Espírito, que coloca o homem diante de Deus, de testimonium internum Spiritus Sancti (testemunho interno do Espírito Santo) [Institutas, 1.7.4-5; 3.2.33]. Calvino entende que, para o homem ouvir a voz divina, não basta Deus falar. A razão é simples. O homem é, por natureza, surdo para ouvir a voz de Deus e cego para enxergar a verdade revelada. Por isso, antes de ouvir, ele precisa ser curado de sua surdez; antes de ver, ele precisa ser curado de sua cegueira. Nas palavras de Calvino, "a palavra de Deus é semelhante ao sol: ilumina a todos a quem é pregada, mas não produz fruto entre os cegos. E, nessa parte, todos nós somos, por natureza, cegos. Por isso, não pode penetrar em nossa mente, a não ser pelo acesso que lhe dá o Espírito, esse mestre interior, com sua iluminação" [Institutas, 3.2.34]. Cf. João Calvino. A instituição da religião cristã. Tomo II. São Paulo: Unesp, 2009, p. 58-59.
10 - Santo Agostinho. Confissões. Lisboa: INCM, 2004, p. 273 (VII, 4, 6).
11 - Sobre essa atitude cínica e simplista, C. S. Lewis diz: "Pois bem, então o ateísmo é simplista. E vou lhes falar de outro ponto de vista igualmente simplista que chamo de 'cristianismo água com açúcar'. De acordo com ele, existe um bom Deus no céu e tudo o mais vai muito bem, obrigado - o que deixa completamente de lado as doutrinas difíceis e terríveis a respeito do pecado, do inferno, do diabo e da redenção. Os dois pontos de vista são filosofias pueris. Não convém exigir uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no mundo real são complexas. Parecem simples, mas não são". Cristianismo puro e simples.









2. Um Evangelho que Devemos Conhecer e Tornar Conhecido
Paul Washer 17 de Janeiro de 2013 - Evangelização
"Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei..." 1 Coríntios 15.1
Um escritor ou pregador do evangelho teria muita dificuldade para elaborar uma introdução melhor ao evangelho de Jesus Cristo do que esta introdução dada pelo apóstolo Paulo à igreja de Corinto. 1 Nestas poucas linhas, Paulo nos oferece verdades suficientes para vivermos durante toda a vida e conduzir-nos à glória. Somente o Espírito Santo poderia capacitar um homem a dizer tanto, com tanta clareza, em tão poucas palavras.
Conhecendo o evangelho
Nesta pequena passagem das Escrituras, achamos uma verdade que tem de ser redescoberta por todos nós. O evangelho não é apenas uma mensagem de introdução ao cristianismo. Ele é "a" mensagem do cristianismo; e o crente fará muito bem se gastar sua vida em procurar "conhecer" a glória do evangelho e em "tornar conhecida" esta glória. Há muitas coisas a conhecermos neste mundo e inúmeras verdades a serem investigadas na esfera do cristianismo, mas o glorioso evangelho de nosso Deus bendito 2 e de seu Filho, Jesus Cristo, é superior a todas elas. É a mensagem de nossa salvação, o instrumento de nosso progresso na santificação e a fonte cristalina da qual flui toda motivação pura e correta para a vida cristã. O crente que compreende algo do conteúdo e do caráter do evangelho nunca terá falta de zelo, nunca será tão necessitado que buscará forças em cisternas rotas e vazias feitas pelas mãos de homens. 3
De nosso texto, entendemos que o apóstolo Paulo já tinha pregado o evangelho à igreja de Corinto. De fato, ele era o pai espiritual daqueles crentes! 4 Entretanto, Paulo viu a necessidade de continuar pregando-lhes o evangelho: não somente de recordar as suas verdades essenciais, mas também de ampliar o seu conhecimento. Na conversão deles, começaram uma jornada de descoberta que abrangeria toda a sua vida e se estenderia pelas eras intermináveis da eternidade – a descoberta das glórias de Deus revelada no evangelho de Jesus Cristo.
Como pregadores e congregantes, seríamos sábios se víssemos o evangelho novamente com os olhos deste apóstolo da antiguidade e o estimássemos como digno de uma vida inteira de investigação cuidadosa. Embora já tivéssemos vivido muitos anos na fé, embora possuíssemos o intelecto de Edwards e o discernimento de Spurgeon, embora pudéssemos entender toda publicação desde os pais na igreja primitiva, passando pelos reformadores e puritanos, até aos eruditos do tempo presente, estejamos certos de que ainda não atingimos nem mesmo os contrafortes deste Everest que chamamos de "evangelho". E isso será dito a nosso respeito mesmo depois de uma eternidade de eternidades!
Vivemos em mundo que nos oferece um número quase infinito de possibilidades, e existe um número incalculável de opções que rivalizam por nossa atenção. O mesmo pode ser dito sobre o cristianismo e a ampla esfera de temas teológicos que um aluno pode estudar. Há um número quase infinito de verdades bíblicas que um homem pode gastar a vida examinando-as. E mesmo o tema menos importante da Escritura é digno de milhares de vidas em seu estudo. Todavia, há um tema que se eleva sobre todos os demais e que é fundamental para o entendimento de todas as outras verdades bíblicas – o evangelho de Jesus Cristo. É por meio desta mensagem singular que o poder de Deus se manifesta na igreja e na vida do crente individual.
Quando examinamos os anais da história do cristianismo, vemos homens e mulheres de paixão incomum por Deus e por seu reino. Anelamos ser como eles e nos perguntamos como chegaram a possuir um zelo tão duradouro. Depois de uma consideração diligente de sua vida, doutrina e ministério, descobrimos que eles diferiram em muitas coisas, mas tiveram um denominador comum entre si. Todos eles tiveram um vislumbre da glória do evangelho, e sua beleza acendeu a paixão deles e os impulsionou a prosseguir. A vida e o legado deles provam que paixão genuína e duradoura resulta de um entendimento cada vez mais crescente e mais profundo do que Deus fez por seu povo na pessoa e na obra de Jesus Cristo! Não há substituto para esse conhecimento!
O evangelho cristão tem sido designado como "evangelho", uma palavra que vem do latim evangellium, que significa boas novas. Esta é a razão por que os crentes são muitas vezes chamados de evangélicos. Somos "evangélicos" porque cremos no evangelho e o estimamos como a verdade primordial e central da revelação de Deus para os homens. O evangelho não é um prefácio, um provérbio ou uma explicação posterior. Não é meramente a classe de introdução ao cristianismo, e sim todo o curso de estudo do cristianismo. É a história de nossa vida, as insondáveis riquezas que procuramos explorar e a mensagem que vivemos para proclamar. Por esta razão, podemos dizer que somos mais cristãos e mais evangélicos quando o evangelho de Jesus Cristo é a nossa única esperança, o nosso único motivo de orgulho e a nossa única e maior obsessão.
Hoje, são realizadas tantas conferencias no âmbito do evangelicalismo, especialmente para jovens, que têm o objetivo de estimular a paixão dos crentes por meio de música, comunhão, palestrantes eloquentes, histórias emocionais e apelos comoventes. Contudo, o entusiasmo que tais conferências produzem, seja ele qual for, desaparece rapidamente. Pequenos fogos foram acessos em pequenos corações e se acabam em poucos dias. Temos esquecido que paixão genuína e duradoura nasce do conhecimento da verdade e, em específico, a verdade do evangelho. Quanto mais "conhecemos" e compreendemos a beleza do evangelho, tanto mais somos tomados por seu poder. Um vislumbre do evangelho moverá o coração verdadeiramente regenerado a segui-lo. Cada vislumbre maior do evangelho acelerará o seu passo, até que ele esteja correndo resolutamente em direção ao prêmio. 5 A essa beleza o coração verdadeiramente cristão não pode resistir. Esta é a grande necessidade do momento! É o que temos perdido e o que temos de obter novamente – uma paixão por conhecer o evangelho e uma paixão idêntica por torná-lo conhecido.
Tornando conhecido o evangelho
Não seria um exagero dizer que o apóstolo Paulo foi um dos maiores instrumentos humanos do reino de Deus, na história da humanidade e na história da redenção. Ele foi responsável pela propagação do evangelho em todo o Império Romano durante um tempo de perseguição incomparável e permanece como um exemplo do que significa ser um ministro cristão. No entanto, ele fez tudo isto por meio da proclamação simples da mensagem mais escandalosa de todas que já chegaram aos ouvidos dos homens. Ao considerarmos a vida do apóstolo Paulo, notamos que ele foi um homem excepcionalmente dotado, em especial no que concerne ao seu intelecto e zelo. Todavia, ele mesmo nos ensinou que o poder de seu ministério não estava em seus dons, mas na proclamação fiel do evangelho. Em sua primeira carta dirigida aos cristãos de Corinto, Paulo escreveu sua grande resignação:
Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho; não com sabedoria de palavra, para que se não anule a cruz de Cristo. 6
Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. 7
Podemos dizer que o apóstolo Paulo foi, acima de tudo, um pregador! Como Jeremias antes dele, Paulo foi constrangido a pregar. O evangelho era como um fogo ardente encerrado em seus ossos, que ele não podia suportar. 8 Aos cristãos de Corinto, Paulo declarou: "Eu cri; por isso, é que falei" 9 e: "Ai de mim se não pregar o evangelho!" 10 Essa estimativa tão elevada do evangelho e de pregá-lo não pode ser fingida, quando não existe no coração do pregador, e não pode ser ocultada, quando existe. Deus chama diferentes tipos de homens para levarem o fardo da mensagem do evangelho. Alguns deles são mais solenes e sérios, enquanto outros são mais desatentos e joviais, porém, quando a conversa muda para o assunto do evangelho, uma mudança ocorre no semblante do pregador, e parece que você tem diante de si uma pessoa muito diferente. A eternidade está estampada na face dele, o véu foi removido, e a glória do evangelho brilha com uma paixão genuína. Tal homem tem pouco tempo para histórias fantásticas, antídotos morais ou para compartilhar pensamentos vindos de seu coração. Ele veio para pregar e tem de pregar! Não descansará enquanto seu povo não ouvir a mensagem de Deus. Se o servo Eliezer não pôde comer enquanto não entregou a mensagem de seu senhor, Abraão, 11 quanto menos um pregador do evangelho ficará tranquilo enquanto não houver entregado o tesouro do evangelho que lhe foi confiado! 12
Embora poucos discordem do que escrevi até aqui, parece que, de modo geral, a pregação apaixonada do evangelho está fora de moda. Ela é considerada por muitos como algo que não possui o requinte e a sofisticação necessários para que seja eficaz nesta era moderna. O pregador cheio de paixão que proclama ousada e categoricamente a verdade é agora considerado um obstáculo para o homem pós-moderno que prefere um pouco mais de humildade e de abertura para com outras opiniões. O argumento da maioria é que temos de mudar nossa maneira de pregar porque o evangelho parece loucura para o mundo.
Essa atitude para com a pregação é prova de que perdemos nosso senso de direção na comunidade evangélica. Foi Deus quem ordenou que a "loucura da pregação" seja o instrumento para levar ao mundo a mensagem salvadora do evangelho. 13 Isto não significa que a pregação deve ser tola, ilógica ou bizarra. Contudo, o padrão pelo qual toda pregação deve ser comparada é a Escritura e não as opiniões contemporâneas de uma cultura decaída e corrupta, que é sábia a seus próprios olhos 14 e prefere ter seus ouvidos coçados e seu coração entretido a ouvir a Palavra do Senhor. 15
Aonde quer que o apóstolo Paulo viajasse, ele pregava o evangelho. Faremos bem se seguirmos o seu exemplo. Embora o evangelho possa ser compartilhado por meio de instrumentos, não há outro instrumento tão ordenado por Deus como a pregação. Portanto, aqueles que estão buscando constantemente meios inovadores para compartilharem o evangelho com uma nova geração de pessoas interessadas fariam bem se começassem e terminassem sua busca nas Escrituras. Aqueles que enviam milhares de questionários que perguntam aos nãos convertidos o que eles mais gostariam de ver em um culto de adoração devem compreender que as inúmeras opiniões de homens carnais não possuem a autoridade de "um i ou um til" da Palavra de Deus. 16 Precisamos entender que há um grande abismo de diferenças irreconciliáveis entre o que Deus ordena nas Escrituras e o que a cultura carnal contemporânea deseja.
Não devemos nos admirar de que homens carnais tanto dentro como fora da igreja desejem teatro, música e mídia no lugar da pregação do evangelho e da exposição bíblica. Enquanto o coração de um homem não for verdadeiramente regenerado, ele aborda o evangelho da mesma maneira como os demônios gadarenos abordaram o Senhor Jesus Cristo: "Que temos nós contigo?" 17Sem a obra de regeneração realizada pelo Espírito Santo, o homem carnal não tem nenhum interesse ou apreciação verdadeira pelo evangelho, mas, apesar disso, este milagre é operado no coração de um homem por meio da pregação do evangelho que, a princípio, ele desdenha. Portanto, devemos pregar aos homens carnais a própria mensagem que eles não querem ouvir, e o Espírito Santo deve agir! Sem isto, os pecadores não podem ver a beleza do evangelho, assim como porcos não podem ver beleza em pérolas, ou como cães não podem mostrar reverência para com carne santificada, ou como cegos não podem apreciar uma pintura de Rembrandt. 18 Os pregadores não fazem bem aos homens carnais por oferecer-lhes as coisas que seu coração caído deseja, e sim por colocar diante deles a verdadeira comida, 19 até que, pela obra miraculosa do Espírito Santo, reconheçam-na como o que ela realmente é, provem e vejam que o Senhor é bom! 20
Antes de terminar esta breve discussão sobre a pregação do evangelho, temos de falar sobre um assunto final. Apresenta-se frequentemente a teoria de que nossa cultura não pode tolerar o tipo de pregação que foi tão eficaz durante os grandes despertamentos e avivamentos do passado. A pregação de Jonathan Edwards, George Whitefield, Charles Spurgeon e outros pregadores semelhantes seria ridicularizada, satirizada e escarnecida pelo homem moderno. No entanto, esta teoria não leva em conta o fato de que estes mesmos pregadores foram ridicularizados e satirizados pelos homens de seus dias! A verdadeira pregação do evangelho será sempre "loucura" para toda cultura. Qualquer tentativa de remover a ofensa do evangelho e de tornar a pregação "conveniente" diminui o poder do evangelho. Também frustra o propósito para o qual Deus escolheu a pregação como o meio de salvar homens – que a esperança dos homens não esteja em nobreza, eloquência ou sabedoria mundana, e sim no poder de Deus. 21
Vivemos numa cultura que está presa ao pecado com algemas de aço. Histórias morais, máximas extraordinárias e lições de vida compartilhadas de um coração de um palestrante querido ou de um "tutor de vida espiritual" não têm nenhum poder verdadeiro contra essas trevas. Precisamos de pregadores do evangelho de Jesus Cristo, que conhecem as Escrituras e são capacitados, pela graça de Deus, a encarar qualquer cultura e a clamar: "Assim diz o Senhor!"
1 - 1 Coríntios 15.1-4.
2 - 1 Timóteo 1.11.
3 - Jeremias 2.13-14; 14.3.
4 - 1 Coríntios 4.15.
5 - Filipenses 3.13-14.
6 - 1 Coríntios 1.17.
7 - 1 Coríntios 1.22-24.
8 - Jeremias 20.9.
9 - 2 Coríntios 4.13. 
10 - 1 Coríntios 9.16.
11 - Gênesis 24.33.
12 - Gálatas 2.7; 1 Tessalonicenses 2.4; 1 Timóteo 1.11; 6.20; 2 Timóteo 1.14; Tito 1.3.
13 - 1 Coríntios 1.21.
14 - Romanos 1.22.
15 - 2 Timóteo 4.3.
16 - Mateus 5.18.
17 - Mateus 8.29.
18 - Mateus 7.6.
19 - Isaías 55.1-2.
20 - Salmos 34.8.
21 - 1 Coríntios 1.27-30.






3. A Morte de Uma Igreja
Hernandes Dias Lopes 18 de Janeiro de 2013 - Igreja e Ministério
As sete igrejas da Ásia Menor, conhecidas como as igrejas do Apocalipse, estão mortas. Restam apenas ruínas de um passado glorioso que se foi. As glórias daquele tempo distante estão cobertas de poeira e sepultadas debaixo de pesadas pedras. Hoje, nessa mesma região tem menos de 1% de cristãos. Diante disso, uma pergunta lateja em nossa mente: o que faz uma igreja morrer? Quais são os sintomas da morte que ameaçam as igrejas ainda hoje?
Em primeiro lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela se aparta da verdade. Algumas igrejas da Ásia Menor foram ameaçadas pelos falsos mestres e suas heresias. Foi o caso da igreja de Pérgamo e Tiatira que deram guarida à perniciosa doutrina de Balaão e se corromperam tanto na teologia como na ética. Uma igreja não tem antídoto para resistir a apostasia quando abandona sua fidelidade às Escrituras nem a inevitabilidade da morte quando se aparta dos preceitos de Deus. Temos visto esses sinais de morte em muitas igrejas na Europa, América do Norte e também no Brasil. Algumas denominações históricas capitularam-se tanto ao liberalismo como ao misticismo e abandonaram a sã doutrina. O resultado inevitável foi o esvaziamento dessas igrejas por  um lado ou o seu crescimento numérico por outro, mas um crescimento sem compromisso com a verdade e com a santidade. Não podemos confundir numerolatria com crescimento saudável. Nem sempre uma multidão sinaliza o crescimento saudável da igreja. Uma igreja pode ser grande e mesmo assim estar gravemente enferma. Sempre que uma igreja troca o evangelho da graça por outro evangelho, entra por um caminho desastroso.
Em segundo lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela se mistura com o mundo. A igreja de Pérgamo estava dividida entre sua fidelidade a Cristo e seu apego ao mundo. A igreja de Tiatira estava tolerando a imoralidade sexual entre seus membros. Na igreja de Sardes não havia heresia nem perseguição, mas a maioria dos crentes estava com suas vestiduras contaminadas pelo pecado. Uma igreja que flerta com o mundo para amá-lo e conformar-se com ele não permanece. Seu candeeiro é apagado e removido. Alguém disse: "Fui procurar a igreja e a encontrei no mundo; fui procurar o mundo e o encontrei na igreja". A Palavra de Deus é clara: ser amigo do mundo é constituir-se inimigo de Deus. Quem ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Há pouca ou quase nenhuma diferença hoje entre o estilo de vida daqueles que estão na igreja e daqueles que estão comprometidos com os esquemas do mundo. O índice de divórcio entre os cristãos é tão alto como daqueles que não professam a fé cristã. O número de jovens cristãos que vão para o casamento com uma vida sexual ativa é quase o mesmo daqueles que não frequentam uma igreja evangélica. A bancada evangélica no Congresso Nacional é conhecida como a mais corrupta da política brasileira. A teologia capenga produz uma vida frouxa. Precisamos voltar aos princípios da Reforma e clamar por um reavivamento!
Em terceiro lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela não discerne sua decadência espiritual. A igreja de Sardes olhava-se no espelho e dava nota máxima para si mesma, dizendo ser uma igreja viva, enquanto aos olhos de Cristo já estava morta. A igreja de Laodicéia considerava-se rica e abastada, quando na verdade era pobre e miserável. O pior doente é aquele que não tem consciência de sua enfermidade. Uma igreja nunca está tão à beira da morte como quando se vangloria diante de Deus pelas suas pretensas virtudes. O cristão não deve ser um fariseu. O fariseu aplaudia a si mesmo por causa de suas virtudes, mas olhava para os publicanos e os enchia de acusações descaridosas. O cristão verdadeiro não é aquele que faz um solo do hino "Quão grande és tu" diante do espelho, mas aquele chora diante de Deus por causa de seus pecados.
Em quarto lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela não associa a doutrina com a vida. A igreja de Éfeso foi elogiada por Jesus pelo seu zelo doutrinário, mas foi repreendida por ter abandonado seu primeiro amor. Tinha doutrina, mas não vida; ortodoxia, mas não ortopraxia; teologia boa, mas não vida piedosa. Jesus ordenou a igreja a lembrar-se de onde tinha caído, a arrepender-se e a voltar à prática das primeiras obras. Se a doutrina é a base da vida, a vida precisa ser a expressão da doutrina. As duas coisas não podem viver separadas. Doutrina sem vida produz orgulho e aridez espiritual; vida sem doutrina desemboca em misticismo pagão. Uma igreja viva tem doutrina e vida, ortodoxia e piedade, credo e conduta!
Em quinto lugar, a morte de uma igreja acontece quando falta-lhe perseverança no caminho da santidade. As igrejas de Esmirna e Filadélfia foram elogiadas pelo Senhor e não receberam nenhuma censura. Mas, num dado momento, nas dobras do futuro, essas igrejas também se afastaram da verdade e perderam sua relevância. Não basta começar bem, é preciso terminar bem. Falhamos, muitas vezes, em passar o bastão da verdade para a próxima geração. Um recente estudo revela que a terceira geração de uma igreja já não tem mais o mesmo fervor da primeira geração. É preciso não apenas começar a carreira, mas terminar a carreira e guardar a fé! É tempo de pensarmos: como será nossa igreja nas próximas gerações? Que tipo de igreja deixaremos para nossos filhos e netos? Uma igreja viva ou igreja morta?


















4. Deus, Você e a Igreja
Sillas Campos 21 de Janeiro de 2013 - Igreja e Ministério
O que você pensa acerca da Igreja de Cristo? Como você a vê? Qual a importância dela em sua vida? Estas são questões muito importantes, cujas respostas revelam sua situação diante de Deus. Quero dizer, seu amor ou desprezo pela igreja revelam seu amor ou desprezo para com o próprio Deus. Por isso, através deste artigo, quero fortalecer sua visão, esperança e amor pela igreja de Cristo. Porém, antes de apresentar-lhe meus argumentos principais trago à sua mente algumas frases anotadas na capa de minha Bíblia:
Onde quer que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida com pureza, ali existe uma igreja de Deus, mesmo que ela esteja repleta de falhas. João Calvino
A igreja não é uma democracia na qual escolhemos a Deus, mas uma teocracia na qual Ele nos escolheu. John Blanchard
Não vamos à igreja, somos a igreja.  Ernest Southcoot
Sei que a Igreja tem suas tolices, incoerências e irrelevâncias; mas eu a amo, assim como amo minha mãe, a despeito de suas fraquezas e rugas. Stanley Jones
Estas frases expressam a opinião de alguns homens, mas nada como a opinião do próprio Deus! Por isso, baseando-nos em 1 Coríntios 3, vejamos o que Deus pensa sobre a igreja; como ele a vê; como ele se relaciona com ela; o que ele está fazendo por ela.
Como Deus vê a igreja
Escrevendo para a igreja em Corinto, o apóstolo Paulo é usado pelo Espírito Santo para nos revelar como Deus vê a igreja. Usando figuras de linguagem, ele nos ensina que o Senhor vê a sua igreja como "cooperadores de Deus" (3.9a); "lavoura de Deus" (3.9b); e "edifício de Deus" (3.9c). Interessante que no original grego a palavra Deus precede os substantivos, ficando assim: "De Deus somos cooperadores; de Deus lavoura, de Deus edifício sois vós". E o propósito disto no grego é salientar vigorosamente que nós, os instrumentos, não temos importância, e enfatizar que tudo é de Deus, e todos pertencem a Deus. Tanto é que no verso 6 e 7 Paulo confirma esta ideia: "Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento".
Através destes versos Deus está dizendo: "Dentro da minha igreja não há lugar para personalidades indispensáveis!" Isto significa que devemos pensar menos acerca de nós mesmos ou de qualquer outro líder humano. Eu e você passaremos, mas a igreja prosseguirá vitoriosa. Como alguém disse: "Deus sepulta seus servos, e prossegue nos seus projetos". Por isso precisamos dizer uns aos outros: "Na igreja de Cristo, eu não sou indispensável! Você não é indispensável! Somente Deus é indispensável!" Alguém disse que pastores e líderes vivem estressados porque se esquecem de quatro importantes leis espirituais, que são:
Deus existe!
Você não é ele!
Arrependa-se! Pare de "dar uma de Deus".
Faça sua parte e descanse nele.


Deus Honra Sua Igreja
O texto diz: "Porque de Deus somos cooperadores..." (9a). O que significa isto? Isto significa que o Deus todo-poderoso, autossuficiente, e completo em si mesmo, na sua condescendência nos confere a honra de trabalhar na sua seara. Isto me faz lembrar quando eu tinha quatro anos e gostava de ajudar meu pai a lavar o carro. Lembro-me do dia que estraguei boa parte da pintura do capô. Hoje sei que eu mais atrapalhava do que ajudava, porém meu pai me honrava diante de toda família dizendo que eu o ajudava a lavar o carro. Esta era uma forma dele me aproximar de si mesmo, de me amar, de me ensinar a crescer. Da mesma forma, o nosso Deus "que não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo..." (At 17.25a) nos confere a honra de sermos seus cooperadores.
Deus Fortalece Sua Igreja
Ao mesmo tempo em que o texto exalta a primazia da ação sobrenatural e soberana de Deus na edificação da sua igreja, o próprio texto não esconde o fato dele usar seu povo para abençoar o seu povo. No início do capítulo vemos Deus usando Paulo para alimentar a sua igreja (3.2). Depois vemos Deus usando os discursos de Apolo e o ensino de Paulo para conferir o dom da fé a eles (3.5). E, logo em seguida vemos Deus usando a vida de Paulo e Apolo, para plantar e regar (3.6). Logo, concluímos que "Deus fortalece seu povo através do seu povo".
Isto não é uma teoria fria e morta, mas uma prática comum e observável dentro de toda igreja de Cristo. A cada encontro, formal ou informal, Deus mesmo fortalece seus filhos. Se alguém está necessitado, Deus usa seu povo para suprir sua necessidade. Se alguém está passando por uma luta, ele usa seu povo para fortalecê-lo! Se alguém está entristecido, ele usa seu povo para consolá-lo! Se alguém está confuso, ele usa seu povo para aconselhá-lo! Se alguém está caído, ele usa seu povo para levantá-lo! Se alguém conquista uma vitória, ele usa seu povo para alegrar-se com ele! Por isso, quando a igreja de Cristo se reúne, às vezes ela se assemelha a um salão de festa cheio de celebração! Às vezes, com a sala de emergência de um hospital que acolhe e trata os feridos! Às vezes, como uma reunião familiar permeada com palavras e atitudes de apoio, carinho e exortação! E, às vezes, com uma escola, um centro de ensino e aprendizado. Num mesmo culto, Deus trata das diversas necessidades do seu povo, através da instrumentalidade do seu povo.
Deus Avalia Seu Povo
Dentro de um capítulo de aplicação corporativa encontramos quatro versículos com aplicação individual. Isto significa que Deus se relaciona com a igreja como um todo, e ao mesmo tempo com cada membro individualmente. Paulo fala do seu ministério inicial a favor da igreja e a partir daí passa a falar da responsabilidade de cada membro na edificação da mesma – "veja cada um como constrói" (10). Seu argumento é que o próprio Deus avalia como cada membro realiza a obra da edificação do corpo de Cristo; que Deus vê quem edifica sobre o fundamento prescrito, que é Cristo (vs. 10-11); Deus vê quem ensina e vive a verdade do evangelho (ouro, prata, pedras preciosas). E Deus vê quem fornece um ensinamento inadequado, ou deixa a desejar no seu testemunho (madeira, feno, ou palha) (v.12).
Mas qual o resultado desta avaliação divina? Primeiro: Deus recompensa os fiéis! "Se permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edificou, esse receberá galardão" (14). Segundo: Deus disciplina os infiéis! "Se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano..." (15a). Terceiro: Deus salva a todos! "... mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através do fogo" (15b). É maravilhoso saber que Deus salva todos os que são seus filhos! Que ele não desiste de nenhum deles! Nem daquele que faz a obra do Senhor relaxadamente. Contudo, devemos nos perguntar: Por que desperdiçar o privilégio de glorificar com o nosso melhor àquele que é digno de toda honra, glória e louvor? Por que desprezar os galardões que Deus promete aos fiéis?
Deus Protege Sua Igreja
Já ouvi crentes usando os versos 16 e 17 deste capítulo para combater a glutonaria, tabaco, promiscuidade, etc. Porém nestes versos o autor já voltou a falar da igreja de forma corporativa. Sim, o nosso corpo é o templo do Espírito Santo (1Co 6.19), mas estes versos afirmam uma outra maravilha: Que, de forma especial, nós, a igreja de Cristo, somos santuário de Deus (16); e que, se alguém atacar a igreja, Deus mesmo o destruirá! Pois a igreja é território sagrado (17).
Isto significa que, se durante um culto alguém decidir contar o número de pessoas presentes, não deve se esquecer da pessoa mais importante: O próprio Deus!
Muitos de nós estamos preocupados. Vemos certas barbaridades sendo introduzidas ao cristianismo (ex.: misticismo, pragmatismo) e tememos pelo presente e futuro da igreja. Porém, há uma palavra de consolo para nós nestes versos! Explico isto com a seguinte pergunta: O que você faz para defender um leão? Resposta: Você simplesmente senta e assiste ele defender-se a si mesmo! Da mesma forma, a igreja é o corpo de Cristo, e Cristo é o leão de Judá! Podemos ficar tranquilos! Cristo sabe muito bem como proteger, cuidar e preservar sua igreja. Confie nele!
Deus Abençoa Sua Igreja (21-23)
Como muitas igrejas em nossos dias, a igreja em Corinto estava cometendo um grande erro. O erro de depender e se orgulhar de certos líderes a quem estavam ligados. Então, Paulo conduz seus pensamentos para os maiores e melhores tesouros que eles já possuíam em Cristo. Ele os recorda que todos os mestres, dons, sabedoria, e até as riquezas e coisas criadas têm sua origem em Cristo, e que, em Cristo isto tudo já lhes pertencia! Por isso, desprezar a Cristo a fim de depender, exaltar e apoiar-se em alguns mestres humanos é tolice! É empobrecer-se! (21-22).
Nós, igreja de Cristo, precisamos apreciar esta grandiosa declaração e demonstração de amor! Nestes versos, Paulo revela que Deus criou o universo, para sua própria glória, pensando na sua igreja! Que ele espalhou as estrelas no céu por causa da igreja! Que ele criou as flores, montanhas, vales, e pássaros para o aprazimento da sua igreja. Que ele concedeu dons aos homens pensando na igreja! Assim como ele realizou a grande obra da redenção por causa da sua igreja! Não podemos nos esquecer disto! Não devemos desviar a devoção e louvor devido a ele! Nenhum herói da fé, mártir, pai da igreja, teólogo, autor, pastor ou cantor evangélico merece os elogios e dependência que devemos somente a ele.
Cristão, espero que estas considerações o ajudam a fortalecer sua visão, esperança e amor pela igreja de Cristo. Se você encontra-se numa igreja onde a Palavra de Deus é pregada e ouvida com pureza, não se desanime diante dos erros e fraquezas. Faça sua parte, dê um bom testemunho, encoraje seu pastor a continuar pregando a Palavra e ore para que o Espírito a use poderosamente na salvação dos perdidos e edificação dos salvos.
E se o querido leitor ainda não faz parte da igreja de Cristo, o desafio de Deus para você é o seguinte: Creia que "Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia" (1Co 15.3). "Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo" (Ro 10.9). E assim você também será introduzido ao que há de mais importante nesta vida: A igreja de Deus!

 

 

 

5. A Glória de Deus no Chamado para Pregar às Nações
Franklin Ferreira 23 de Janeiro de 2013 - Evangelização
Gostaria de usar o texto de Jeremias 1.4-19 para tratar de três temas vitais ao ministério cristão de ensino: a vocação, a pregação e seu conteúdo, e a coragem necessária para permanecer firme. Na verdade, gostaria de usar o texto de Jeremias como um texto de formação, que entrelace nossas vocações de ensino à vocação de Jeremias, que nos ajude a recuperar o senso de chamado para pregar a mensagem de Deus às nações. Antes de continuar, fazem-se necessárias algumas palavras introdutórias. Jeremias, que significa "aquele que exalta o Senhor", começou seu ministério no reinado de Josias, que iniciou uma reforma e renovação da aliança, de curta duração. Ele pertencia a uma família de sacerdotes e recebeu seu chamado quando tinha 18 anos, na segunda década do século sétimo a.C., na pequena cidade de Anatote, a cinco quilômetros de Jerusalém. Na verdade, Jeremias viveu em meio a um turbulento momento político na história da região: a Assíria entrara em declínio como império, o Egito tentava recuperar sua influência, e a Babilônia era o poder em ascensão no leste. Pouco depois, Josias foi morto em Megido e, em rápida sucessão, três de seus filhos, Joacaz, Jeoaquim e Zedequias, e um neto, Joaquim, sucederam-no no trono. Por não temerem a Deus, esses reis conduziram o povo da aliança aos eventos mais devastadores da história de Judá: a invasão babilônica, a destruição do templo e o exílio no estrangeiro.
Nós hoje vivemos numa encruzilhada da história. A igreja tem crescido globalmente. Aqui no Brasil há muitos pastores devotos, crentes sérios, igrejas saudáveis, sinais da obra do Espírito Santo. Ao mesmo tempo, há superficialidade e infidelidade bíblica, traição ministerial, divisões, idolatria por crescimento de igreja a qualquer custo. Na esfera pública temos governos populistas, corrupção, pessoas morrendo em portas de hospitais, violência crescendo assustadoramente e impunidade ampla, geral e irrestrita. Há preocupantes sinais de ameaças à liberdade de culto e de expressão. Diante desse quadro, (1) qual deve ser a imagem cultivada por aqueles chamados a obedecer à ordem de pregar a palavra de Deus? (2) Qual deve ser o conteúdo de tal mensagem? (3) Como aqueles chamados a pregar essa soberana Palavra devem se portar?
1. Vocação (4-8)
Vamos nos deter um pouco nos versículos 4-7: O relato começa com a afirmação "a mim me veio, pois, a palavra do Senhor" (Jr 1.4). Essas palavras ou expressões equivalentes ocorrem outras vezes no livro (Jr 7.1; 11.1; 14.1; 16.1; 18.1). A palavra way'hi ("continuou a vir") sugere que este chamado veio não de forma súbita, mas de forma persistente. "Antes que eu te formasse": estas primeiras palavras do Senhor a Jeremias revelam que foi iniciativa de Deus o fato de ele ter sido escolhido para ser profeta. O nome de Deus domina a cena: nessa pequena passagem o nome do Senhor é citado 12 vezes! Ele o predestinou para anunciar a mensagem, e antes mesmo de seu nascimento, Jeremias foi consagrado ("separado", "santificado") por Deus para essa tarefa (Jr 1.5; cf. Gl 1.15). Desde a concepção até a consagração, Deus tinha preparado cada etapa do processo, conhecendo todas as necessidades e sabendo como supri-las. Em outras palavras, Jeremias recebeu o caráter e a personalidade necessários para a obra profética. "E te constituí": significa "dei", isto é, antes mesmo de Jeremias nascer ele foi dado. Essa é a maneira de Deus agir. Ele fez isso com seu próprio Filho, Jesus Cristo (Jo 3.16). Deus o ofereceu às nações. Deus continua enviando aqueles que ele chama a pregar às nações, em obediência ao chamado e em imitação a seu Filho (1Co 11.1).
Por outro lado, a reação de Jeremias mostra que ele não era voluntário (Jr 1.6). Ele menciona sua idade: "Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança". Na verdade, ele não queria dizer que era uma "criança", mas que ainda não chegara aos trinta anos, que era o tempo quando os levitas iniciavam oficialmente seu ministério, sendo, portanto, muito jovem para atender o chamado. Mas Deus responde a objeção: "Não digas: Não passo de uma criança" (Jr 1.7). A compreensão de que ele tinha sido escolhido como instrumento da revelação de Deus para uma geração endurecida forneceu a convicção de que sua missão provinha de Deus, e levou-o a proclamar a palavra do Senhor a uma nação teimosa e rebelde. E ele recebeu forças da comunhão constante com Deus em oração (cf. Jr 12-20, as cinco "confissões" de Jeremias). "Porque a todos a quem eu te enviar irás; e tudo quanto eu te mandar falarás": Quanto mais próximo do exílio, o cumprimento da profecia, mais sua timidez inicial é substituída por coragem, o que mostra o quanto ele amadureceu em sua vocação.
Como acontece com Jeremias no versículo 8, os servos de Deus receberam muitas vezes a ordem "não temas", como Abraão (Gn 15.1), Moisés (Nm 21.34; Dt 3.2), Daniel (Dn 10.12, 19), Maria (Lc 1.30), Simão (Lc 5.10) e Paulo (At 27.24). Diante do medo, uma emoção terrível e paralisante, Deus assegura que sustentará seu servo. Jeremias não estaria livre de oposição e até de perigo físico, porém cumpriria seu ministério em todas as dificuldades, porque Deus estaria com ele para fortalecê-lo. Portanto, Jeremias submeteu-se à sua vocação. E, mesmo sem sair de Jerusalém, ele seria um profeta às nações – a mensagem de Deus ecoaria por Egito, Filistia, Moabe, Amom, Edom, Damasco, Quedar, Hazor, Elão e Babilônia (Jr 46-51). Talvez, como Jeremias, nunca viajemos para fora de nosso país para anunciar a mensagem de Deus. Mas, ainda assim, podemos ser instrumentos para levar a Palavra de Deus às nações.
Parece que o estilo de vida dos homens que exercem hoje a vocação profética no Brasil está em ruínas. Esta vocação proclamadora foi substituída por estratégias comandadas por burocratas religiosos munidos de planos de negócios. Pensa-se hoje no pastor como alguém "que faz as coisas" ou que "faz as coisas acontecerem". Pastores construtores de templos. Pastores administradores. Pastores executivos. Pastores seniores. Essa definição se aplica aos modelos básicos de liderança em nossa cultura: políticos, homens de negócios, celebridades e atletas. Mas nossa vocação precisa ser modelada por Deus, pelas Escrituras e pela oração. O elemento central da vocação profética não é de alguém "que faz as coisas", e sim de alguém colocado na comunidade para estar atento e chamar a atenção ao que Deus fala em sua Palavra, palavra de juízo e denúncia, mas palavra de graça, misericórdia e renovação.
Neste sentido, precisamos relembrar: Deus chama alguns membros da santa comunidade sacerdotal para pregar o evangelho, as boas novas da livre graça de Deus. Essa vocação é uma obra interna de Deus, que chama os servos da Palavra. E embora seja interno, o chamado para o ministério inevitavelmente virá acompanhado por um testemunho externo. Ou seja, aqueles chamados para a pregação da Palavra demonstrarão dons e aptidões para o exercício do ministério. Eles são equipados pelo Espírito Santo para pastorear, evangelizar, pregar e ensinar – e frutos visíveis serão evidenciados por conta desse chamado interno. E será confirmado diante da igreja este chamado interno, por conta dos frutos externos da obra da graça que já aconteceu interiormente. Portanto, a vocação profética não pode ser reduzida a mero trabalho. Este pode ser quantificado e avaliado. Pode-se dizer se este chegou ao fim ou não, assim como se pode ser contratado ou demitido. Uma vocação não é um trabalho. A vocação profética é sobre a pregação da Palavra, sobre a administração dos sacramentos, sobre chamar o povo de Deus a adorar o Pai, Filho e Espírito Santo, é sobre lembrar semanalmente à comunidade da fé os privilégios e responsabilidades da aliança.
Karl Barth afirmou que quem não houver sido chamado para pregar, que não o faça, pois não será pequeno mal que causará se subir ao púlpito sem haver sido escolhido por Deus para isto. Por outro lado, se você foi chamado para anunciar a santa Palavra, você só tem um, e um único oficio: anunciar fielmente "todo o desígnio de Deus" (At 20.27), portando-se como alguém que pertence exclusivamente ao Senhor.
2. Conteúdo e Pregação (9-16)
Analisando os versículos 9-10, percebemos que tocando na boca do jovem, Deus simboliza a comunicação de sua mensagem. Agora o Senhor proclama sua mensagem às nações tendo Jeremias por arauto. Para transmitir esta mensagem, Deus usa metáforas baseadas na agricultura e na construção, constituída por três pares de verbos, os dois primeiros negativos e o terceiro positivo: o profeta deve arrancar e derribar, destruir e arruinar para então edificar e plantar (Jr 1.10). Toda a corrupção na nação deve ser arrancada e derrubada, e somente depois disto é que se pode edificar e plantar de novo. Portanto, a mensagem do profeta teria duas funções. Em primeiro lugar, essa mensagem era uma declaração sobre a maldição da aliança que seria executada em seu devido tempo (Dt 28.1-68). Em segundo lugar, as bênçãos da aliança se tornariam realidade. Deus quer renovar, reconstruir e restaurar seu povo, mas antes da renovação é necessária a remoção radical do pecado e da infidelidade à aliança e eleição. A ruína é inevitável, enquanto a nação persistir no pecado, mas a palavra de renovação oferece esperança de restauração. Usando a linguagem do Novo Testamento, Deus tem primeiro de remover o pecado, antes de o pecador começar a crescer na graça e no conhecimento de Jesus Cristo.
Jeremias, entretanto, é humano. Ele reage inicialmente com medo e inadequação. São reveladas então a Jeremias duas visões inaugurais, descritas nos versículos 11-13. A primeira é a de "uma vara de amendoeira" (Jr 1.11). Em hebraico, a palavra "amendoeira" (shaqéd) e o verbo "eu velo sobre" (shoqéd) têm som semelhante. Há um jogo de palavras aqui que ilustra a prontidão com que Deus cumpre suas promessas. Sempre que o profeta visse a cada primavera uma amendoeira em flor, ele seria lembrado de que o Senhor está observando para assegurar que sejam cumpridas todas as palavras transmitidas em seu nome (Jr 1.12). A segunda visão tinha um tom mais sinistro, "uma panela ao fogo" (ou "fervendo"), literalmente uma panela sobre a qual alguém sopra, e cuja boca se inclina do Norte, indicando que seu conteúdo se derrama em direção ao sul (Jr 1.13). Essa visão indica a invasão babilônica, que virá do norte (Jr 20.4).
Percebemos nos versículos 14-16 que o exército da Babilônia executará o propósito de Deus de punir a idolatria de Judá e a quebra da aliança do Sinai. O verbo qtr, "queimar incenso" (Jr 1.16), é usado em outras passagens significando queimar a gordura dos sacrifícios (cf. 1Sm 2.16; Sl 66.15). A tensão entre o culto aos ídolos e a adoração exclusiva ao Senhor chegaram ao clímax. A guerra viria para interromper um modo de vida inútil, impuro e indolente, obrigando o povo a voltar seus olhos para o que é essencial e eterno. Mas Jeremias não vai trazer o fim por meio da espada ou da ação política. Ele é chamado a proclamar a palavra do Senhor quantas vezes for necessário, custe o que custar, e um alto preço será exigido dele.
Aqueles chamados ao ofício de anunciar a Palavra de Deus não são chamados a trocar a mensagem da aliança pelo discurso político. Nenhuma ideologia é absoluta e nem pode ser confundida com o evangelho. Sempre que a igreja ou mesmo pastores e teólogos identificaram determinada ideologia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa foi não apenas distorcida, mas acabou sendo perdida. Portanto, a preocupação primeira daqueles chamados a anunciar a Palavra de Deus não é tanto com a mudança da sociedade civil, mas com a reforma e renovação da igreja por meio da mensagem de Deus. Aqueles chamados ao ofício de anunciar a palavra de Deus não são chamados para lidar com aqueles que ouvem e se submetem à mensagem profética como se fossem problemas. É fácil reduzir as pessoas a problemas, pois na maior parte das vezes é fácil solucionar esses problemas. Mas os profetas são chamados a conduzir as pessoas dos ídolos a Deus, da rebelião para a aliança, por meio da Palavra, da adoração e da oração. Aqui somos meros instrumentos nas mãos de Deus. As pessoas não devem ser vistas como problemas em busca de solução, mas como pecadores que podem ser renovados à imagem de Deus. Portanto, a vocação é sobre conduzir as pessoas a Deus, por meio de sua Palavra, em humildade. Trata-se de permanecer junto ao povo.
A tentação à qual os profetas estão sujeitos é considerar Deus uma mercadoria, utilizá-lo para legitimar a idolatria (cf. Jr 23.21-40). Qual é, então, o conteúdo da mensagem profética? Deve-se conhecer o Senhor (Jr 8.7; 24.7; 31.31-34). Este conhecimento se dá por meio do Messias, o Renovo Justo, descendente de Davi, que executa juízo e justiça na terra (Jr 33.14-18), a fonte de águas vivas (Jr 2.13), o bálsamo de Gileade (Jr 8.22), o Bom Pastor (Jr 23.4), o Renovo Justo (Jr 23.5), o Senhor justiça nossa (Jr 23.6), aquele que trará a nova aliança (Jr 31.31-34). E este novo conhecimento redunda em preocupação pelo aflito e necessitado e na prática da justiça e retidão.
A mensagem profética é o convite para "voltar" (Jr 4.1-2; cf. 9.24; 22.2, 13, 15; 23.5; 33.15). Este termo e seus cognatos foram usados quase cem vezes neste livro e são o significado literal da palavra "arrependimento". Implica voltar-se dos próprios caminhos para a aliança (Jr 6.16), é um chamado à comunidade para um retorno à "verdade", "juízo" e "justiça". Em suma, o povo é chamado ao arrependimento e ao conhecimento de Deus por meio do Messias. E o remédio de Deus para o coração enfermo (Jr 17.9) será gravar sua lei no coração da nova comunidade (Jr 31.31-34). Portanto, o verdadeiro profeta é aquele que procura distanciar o povo do mal, enfatizando as exigências de Deus na aliança (Jr 23.14, 22).
Usando a linguagem do Novo Testamento, aqueles dentre nós chamados ao santo ministério da Palavra, devem pregar as realidades grandiosas e magníficas de Deus e do Espírito Santo, da Escritura e da criação, da cruz de Cristo e da aliança, da salvação e de uma vida santa, a oração, o batismo, a santa ceia. E isso deve ser pregado no púlpito, nas salas de aula e na visitação pastoral, ansiando por vidas moldadas pela Palavra de Deus, renovada pelo Espírito Santo, de uma humildade disposta ao sacrifício, que erguem a Deus um louvor santo, sofrendo sem perder o contentamento, orando sem cessar, perseverando na santidade.
3. Segurança (17-19)
Na seção composta dos versículos 17-19 podemos ver que o desânimo que o profeta sentiu ao entender o conteúdo da profecia é combatido por uma ordem direta: "cinge os lombos" (Jr 1.17), que pode ser traduzida como: "e você, prepare-se!" A frase é um termo militar hebraico usado para descrever um soldado vestido e devidamente preparado para tomar sua espada. Antes mesmo de nascer, ele foi convocado para lutar nessa batalha. Não lhe foram concedidos alguns anos nos quais pudesse refletir e decidir em que lado se posicionaria ou mesmo se iria lutar. Ele foi escolhido. Deus o chamou para ser um guerreiro. Então, ele deve ser fiel ao anunciar a Palavra de Deus e não deve temer a ninguém. Mais do que isso, o Senhor incita Jeremias a se preparar para a batalha. Se Jeremias perder sua coragem, Deus o abandonará por sua falta de fé: "Não te espantes diante deles, para que eu não te infunda espanto na sua presença". Devemos entender: há uma verdadeira batalha espiritual sendo travada. Há maldade, crueldade e infelicidade. Há superstição e ignorância; brutalidade e dor. Não existe zona neutra no Universo. Cada centímetro quadrado é área de combate. Deus se levanta contra tudo isso. Ele está salvando, resgatando, abençoando, provendo, julgando, renovando: "Conjuro-te, perante Deus e Cristo Jesus, que há de julgar vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu reino: prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina" (2Tm 4.1-2).
Deus, então, faz uma das promessas mais ricas que ele pode fazer aos seus servos: "Tu, pois, cinge os lombos, dispõe-te e dize-lhes tudo quanto eu te mandar; não te espantes diante deles, para que eu não te infunda espanto na sua presença. Eis que hoje te ponho por cidade fortificada, por coluna de ferro e por muros de bronze, contra todo o país, contra os reis de Judá, contra os seus príncipes, contra os seus sacerdotes e contra o seu povo. Pelejarão contra ti, mas não prevalecerão". Mesmo com todos contra ele, Deus estará ao seu lado, fazendo-o invencível. A presença de Deus lhe dá a certeza de que ele será uma fortaleza invencível, firme como uma "coluna de ferro" e resistente aos ataques como "muros de bronze". E sua mensagem afetará pessoas de todas as classes sociais em Judá, dos líderes políticos e sacerdotes ao cidadão comum.
No início do verão de 1942, uma crente luterana, Sophie Scholl, participou da produção e distribuição de panfletos de um pequeno movimento de resistência pacífica chamado Rosa Branca. Ela foi presa, junto com seu irmão, Hans Scholl, e outro universitário, Christoph Probst, em 18 de fevereiro de 1943, depois que o reitor da Universidade de Munique os surpreendeu distribuindo esses panfletos no pátio da universidade. Em 22 de fevereiro de 1943 os três foram julgados em menos de quatro horas, acusados de alta traição e decapitados no mesmo dia. Suas últimas palavras foram: "Como podemos esperar que a justiça prevaleça quando são poucos os que estão dispostos a se doarem individualmente a uma causa justa? Um dia bonito e ensolarado, e eu tenho de partir, mas o que importa a minha morte, se através de nós milhares de pessoas forem despertadas e instadas à ação?" Sophie Scholl foi martirizada com 21 anos. Mesmo tão jovem, ela se opôs ao totalitarismo nazista, por causa de sua fé, num contexto de repressão, censura e conformismo. Isso é coragem invencível! Se você foi chamado a anunciar a Palavra, fique firme! A promessa e a graça de Deus estão com você! Como diz a canção do grupo Logos:
Meu servo, não temas!
Não temas, pois eu te escolhi!
Sei que é difícil, mas confia em mim!
Confia em mim e então,
Tu verás o meu poder!
Durante seus quarenta anos de ministério, Jeremias foi invencível. Diversas vezes passou por intensa agonia, mas não traiu sua vocação. Ele foi desprezado e perseguido, mas jamais deixou de anunciar a mensagem de Deus. Ele foi tremendamente pressionado para que fizesse concessões, desistisse e se escondesse, porém, jamais cedeu. Cada músculo do seu corpo foi exigido até o limite da fadiga. Mas ele foi corajosamente "coluna de ferro" e "muros de bronze". Muitos se oporiam, mas Deus prometeu estar com ele e protegê-lo: "Eu sou contigo, diz o Senhor, para te livrar" (Jr 1.19).
Conclusão
Jeremias foi o profeta mais rejeitado e resistido da história israelita. Ele recebeu a ordem de não se casar ou ter filhos (Jr 16.1-4), uma experiência incomum de celibato. Experimentou oposição, castigos e prisões (Jr 11.18-23; 12.6; 18.18; 20.7; 26.9-19; 28.5-17; 37.11-38.28). Muitas vezes é chamado de o "profeta chorão" (Jr 9.1; 13.17; 14.17). Quando levado para o Egito, contra a sua vontade, caiu no esquecimento – de acordo com a tradição, ele morreu naquele país, dez anos depois, apedrejado por seus compatriotas, que ainda se recusavam a aceitar sua mensagem. Mas não somos chamados a andar por vista, mas por fé. Jeremias foi grandemente honrado pelos escritores do Novo Testamento. Sua profecia é citada 40 vezes, a metade no Apocalipse (cf. 50.8; Ap 18.4; 50.32; Ap 18.8; 51.59s; Ap 18.24s). A mais longa citação do Antigo Testamento no Novo Testamento é a passagem da "nova aliança" (Jr 31.31-34; cf. Hb 8.8-13). As denúncias de Jeremias contra o povo como incircunciso de coração e ouvido (Jr 6.10; 9.26) foram repetidas por Estevão (At 7.51), uma pregação que lhe custou a vida. As lições tiradas da visita à casa do oleiro (Jr 18.1-10) foram aplicadas por Paulo ao chamado dos gentios por Deus (Rm 9.20-24). E Jeremias, que foi considerado o mais humano dos profetas, recebeu a maior honra, ter sido comparado ao Filho do Homem (Mt 16.14). Que obedeçamos nossa vocação, preguemos fielmente a mensagem recebida, que finquemos os pés no chão com coragem, para que em tudo Deus seja glorificado.
"Todavia, o meu povo trocou a sua Glória por aquilo que é de nenhum proveito. Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai estupefatos, diz o Senhor. Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas" (Jr 2.11-13).
"Dai glória ao Senhor, vosso Deus, antes que ele faça vir as trevas, e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte e a reduza à escuridão" (Jr 13.16).
"Não nos rejeites, por amor do teu nome; não cubras de opróbrio o trono da tua glória; lembra-te e não anules a tua aliança conosco" (Jr 14.21).
"Ó Senhor, Esperança de Israel! Todos aqueles que te deixam serão envergonhados; o nome dos que se apartam de mim será escrito no chão; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas. Cura-me, Senhor, e serei curado, salva-me, e serei salvo; porque tu és o meu louvor" (Jr 17.13-14).
Bibliografia:
Issiaka Coulibaly, "Jeremias", em Tokunboh Adeyemo (ed. geral), Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
Karl Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
F. Cawley, "Jeremias", em F. Davidson (ed.), Novo comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, s/d.
J. G. S. S. Thomson, "Jeremias", em J. D. Douglas (ed.), Novo dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 794-800.
R. K. Harrison, Jeremias e lamentações; introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova & Mundo Cristão, 1989.
Eugene H. Peterson, Memórias de um pastor. São Paulo: Mundo Cristão, 2011.
Eugene H. Peterson, Ânimo; o antídoto bíblico contra o tédio e a mediocridade. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
J. R. Soza, "Jeremias", em T. Desmond Alexander & Brian S. Rosner, Novo dicionário de teologia bíblica. São Paulo: Vida, 2009, p. 324-329.
















6. Quão Firme Fundamento!
Steven J. Lawson 25 de Janeiro de 2013 - Teologia
Nenhum edifício erigido por mãos humanas pode ser e permanecer sólido e forte, a não ser que os seus alicerces estejam bem fixos e sejam firmes. Um edifício alto não pode ser construído sobre uma fundação tendente a fragmentar-se. Não se deve construir um edifício sobre mero lixo ou entulho. Sem uma base sólida e sem colunas enterradas profundamente, a estrutura superior cairá. E mais, quanto mais alto o edifício, mais profundas as colunas devem ser. A solidez estrutural do edifício todo repousa completamente na firmeza do alicerce.
Em nenhum outro lugar essa verdade é mais aplicável do que na construção da igreja, que é "uma casa espiritual" (1Pe 2.5). Jesus Cristo em pessoa é o único Edificador da igreja, como prometeu: "Edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não poderão vencê-la" (Mt 16.18b). Cristo não disse "vocês edificarão a minha igreja". Tampouco disse: "Eu edificarei a igreja de vocês". Em vez disso, afirmou: "[Eu] edificarei a minha igreja". Cristo, pessoalmente, está construindo a sua igreja, e, como um sábio construtor, está estabelecendo-a sobre fundação de sólidas pedras – o sólido fundamento da doutrina (Ef 2.20).
Amarras Inamovíveis da Graça Soberana
A pedra angular, a principal pedra de uma igreja construída por mãos divinas, é a fé no senhorio de Jesus Cristo. Afinal de contas, foi essa a grande confissão de Pedro – "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16) – que deu azo à grande promessa de Jesus de que construiria soberanamente a sua igreja. Há, porém, outras amarras inamovíveis da igreja, além desta de que acabamos de falar. No processo de edificar a sua igreja, o Senhor Jesus levanta e coloca nos respectivos lugares as fortes colunas e os fortes componentes de tudo quanto ensinou – o completo conselho de Deus. Jesus ordenou que os seus discípulos ensinassem "tudo o que eu lhes ordenei" (Mt 28.20, com ênfase em tudo). As verdades que Cristo ensinou constituem a fundação sólida e segura. E no coração mesmo do seu ensino doutrinário está um inequívoco compromisso com a soberania da graça divina. Estas verdades centrais formam a sólida base do firme fundamento da igreja. A igreja que é construída sobre as doutrinas da graça, é erguida sobre a inexpugnável rocha da revelação divina. Que firme fundamento tal igreja tem!
Mas, triste é dizer, a igreja atual parece ter a intenção de retirar as doutrinas da graça do seu alicerce. Em vez disso, prefere construir com madeira, palha e restolho sobre areia movediça. Uma igreja assim pode ter uma impressionante aparência externa, e, portanto, pode atrair muita gente. Mas, interiormente ela não é espiritual, é instável, e, pior, em grande parte não é convertida. Tal igreja, construída sobre um alicerce tão frágil não pode ter esperança de subsistir nos dias de tribulação. Mas a história registra que quando uma igreja é edificada com o ouro, a prata e as pedras preciosas de uma mensagem centrada em Deus, ela é fortalecida e pode resistir aos mais difíceis temporais. Nem mesmo os ventos tempestuosos da apostasia, da perseguição e das terríveis chamas do martírio podem fazê-la cair. De fato, sempre que a igreja é edificada sobre a sólida rocha da graça soberana de Deus, ela permanece inamovível, como inamovível tem permanecido nas horas mais tenebrosas da história.
A Graça Soberana: um Firme Fundamento
As verdades da graça soberana formam o mais forte fundamento doutrinário para qualquer igreja ou crente. As doutrinas relacionadas com a soberania de Deus na salvação do homem lançam a mais sólida pedra angular e, assim, protegem firmemente a vida e o ministério do povo de Deus. O culto na igreja é mais puro quando o ensino dessa igreja sobre a graça soberana é mais claro. Seu modo de viver é mais limpo quando a sua exposição das doutrinas da graça é mais rica. Sua comunhão é mais agradável quando a instrução sobre a soberania de Deus é mais firme. Sua obra de evangelização no mundo é mais forte quando a sua proclamação da teologia transcendental é mais ousada. A vida espiritual da igreja toda é elevada quando a sua mensagem está ancorada no mais alto conceito sobre a graça soberana de Deus. Foi nos tempos da história em que as doutrinas da graça eram apresentadas em sua rica plenitude, que a igreja esteve melhor. Eis onde permanece o firme fundamento da igreja: nas enriquecedoras verdades da graça soberana.
A respeito desse sólido fundamento, Benjamin B. Warfield escreveu:
Pois bem, estes Cinco Pontos compõem uma unidade orgânica, um singular e uno corpo da verdade. Eles estão baseados em duas pressuposições que a Escritura endossa abundantemente. A primeira pressuposição é a completa impotência do homem, e a segunda é a absoluta soberania de Deus em sua graça. Todos os demais pontos são decorrências. O local de encontro desses dois fundamentos é o coração do Evangelho, pois, se o homem é totalmente depravado, segue-se que é necessário que a graça de Deus em salvá-lo seja soberana. De outro modo, o homem inevitavelmente a recusará em sua depravação, e permanecerá não redimido. 1
Warfield está certo em sua avaliação. A culpa humana e a graça divina se cruzam no Evangelho, e as doutrinas da graça soberana retratam vividamente a grandiosidade da obra de salvação planejada e operada por Deus.
Sobre este ponto, Boice declara sucintamente: "As doutrinas da graça permanecem ou caem juntas, e juntas apontam para uma verdade central: a salvação é toda de graça porque é toda de Deus; e, porque é toda de Deus, é toda para a sua glória". 2 Toda a glória seja para Deus, que supre toda a graça.
Bibliografia:
1 - B. B. Warfield, "A Review of Studies in Theology", em Selected Shorter Writings of Benjamin B. Warfield, II, ed. John E. Meeter (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1973), 316.
2 - Boice e Ryken, The Doctrines of  Grace: Rediscovering the Evangelical Gospel, 32.

 

7. O Fundamento da Igreja e a Fé
Mauro Meister 30 de Janeiro de 2013 - Vida da Igreja
Em Mateus 16 temos a narrativa de um diálogo entre Jesus e seus discípulos durante um "retiro espiritual" que fizeram pelas "bandas de Cesaréia de Filipe" (v. 13). Afastado das multidões, das controvérsias com os fariseus e outros adversários, das tremendas demandas diárias que recebia de todos à volta, o Senhor chama aqueles que estavam mais próximos à reflexão, para lhes mostrar alguns dos fundamentos sobre os quais a "sua igreja" seria continuada e firmada na face da terra.
Com a excelência da pedagogia que sempre é evidente nos Evangelhos, nosso Senhor começa a sua lição sobre os fundamentos da Igreja com uma pergunta que vai levar a uma outra: "Quem diz o povo ser o Filho do Homem?".  Certamente, o simples invocar do nome "Filho do Homem" já faria com que os discípulos refletissem a respeito das mais diversas conversas e discussões acaloradas, tidas depois das leituras dos textos da Torá aos sábados na Sinagoga. Quem é o "Filho do Homem" segundo os Salmos ou o Daniel, ou mesmo na forma como a expressão é empregada para chamar o profeta Ezequiel?  Quem é esse a quem tanto esperamos, era a pergunta no ar?
A resposta estava pronta, mostrando que havia algumas principais correntes de interpretação entre os doutos, correntes essas que se espalhavam na opinião do povo: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas... (v. 14). Mal sabia o povo que o Filho do Homem já andava entre eles a cerca de 30 anos, e pouquíssimos o reconheceram, dentre eles, alguns cegos, exatamente para mostrar que o real problema da humanidade não é a cegueira física, mas a cegueira espiritual.
Continuando com a sua sutil e certeira pedagogia, Jesus faz, então, a pergunta que realmente interessa: "Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?" (v. 15). Observe que a associação é imediata: "o Filho do Homem" e quem "eu sou".  Aqui está a primeira lição direta: Jesus é o Filho do Homem anunciado no Antigo Testamento.
Como é usual, Pedro sai na frente ao dar a resposta. É peculiar de Pedro adiantar-se em falar e agir. E a resposta de Pedro é direta: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (v. 16). A resposta é carregada de conceitos teológicos fundamentais que são trazidos pelos textos da Lei, dos Salmos e dos Profetas. Em resumo, Pedro faz uma associação teológica dizendo que o Filho do Homem é o mesmo Messias, que é o Cristo e que este mesmo é o Filho do Deus vivo, e, afinal, era este homem que estava diante dos seus próprios olhos na região de Cesaréia de Filipe. A partir desta realidade, aprendemos alguns importantes princípios no diálogo que se desenvolve.
Princípio da Revelação
Na resposta do diálogo, Jesus mostra, então, o primeiro grande fundamento sobre o qual a sua igreja está firmada: a iluminação do Espírito Santo sobre a Revelação, ou como chamarei aqui, o Princípio da Revelação.  O Senhor Jesus diz que não foi carne ou sangue que fizeram Pedro reconhecer esta verdade revelada nas Escrituras e agora exposta diante de seus próprios olhos, mas o próprio Deus. Esta é uma das fundamentais diferenças entre o cristianismo e outras religiões. A revelação que vem da parte de Deus e que corresponde à realidade dos fatos. Jesus é aquele que a Escritura diz que ele é. Jesus é aquele que ele mesmo diz ser. Jesus é aquele que Deus diz ser! Temos aqui três ideias básicas. Primeiro, que a revelação passada se cumpre em Cristo, afinal, ele é o Messias prometido. Segundo, que a revelação presente, na encarnação do Filho do Deus vivo, é superior. Não no sentido de que a revelação anteriormente dada fosse imperfeita, mas agora, ela é completa e plena. Tudo o que Deus quis revelar, mostrou-nos no seu Filho (Hb 1.3; Jo 1.18). E terceiro, aprendemos que a iluminação individual é fundamental. O verso 17 nos ensina que Deus revelou a Pedro esta verdade. Os escribas, fariseus e todos os estudiosos da época tinham as mesmas fontes que Pedro tinha, mas foi Pedro quem conectou os pontos da revelação passada com a revelação presente diante dos seus olhos. Esta mesma verdade é viva hoje quando, pela iluminação do Espírito Santo, percebemos na Escritura a verdade de Deus. Crer na revelação da Palavra de Deus é uma bem-aventurança: "Bem-aventurado és, Simão Barjonas". Sobre esta revelação é que a fé da Igreja deve ser fundamentada.
Princípio da Edificação
A resposta de Jesus a Pedro começou com uma troca de palavras: você disse que eu sou o Cristo, e eu digo, Simão Barjonas (Simão filho de Jonas), que você é pedra (o significado do apelido de Simão, Pedro). Jesus usa deste trocadilho para trazer à luz uma das mais importantes verdades a respeito da fé da Igreja: "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (v. 18).
O catolicismo romano imediatamente interpretou o jogo de palavras, Pedro e pedra, como sendo a mesma palavra e nisto construiu a doutrina do papado, sendo Pedro o primeiro desta suposta sucessão. Mas há aí uma falácia. Quando Jesus diz "esta pedra", não refere-se a Pedro, mas à verdade pronunciada por Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". É sobre esta verdade que a Igreja irá subsistir, a obra do Filho de Deus. O próprio Pedro, refletindo sobre esta verdade, fala-nos em sua primeira epístola: "Por isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido" (1Pe 2.6).
A grande lição aprendida aqui é que a Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada sobre fundamentos humanos. Sempre que interferimos e nos colocamos no lugar do fundamento verdadeiro encontramos diante de nós uma igreja falsificada, trasvestida e irreconhecível como igreja de Cristo.
Princípio da Propriedade
Da mesma forma como a igreja não pode ter fundamentos lançados por homens, ela não pode ter homens como seus proprietários! No final do verso 18, o Senhor Jesus usa a expressão "minha igreja". A igreja é dele, sua noiva, pela qual ele tem verdadeiro zelo e compromisso. Com base nesta verdade é que são feitas muitas promessas à Igreja e a respeito da Igreja, dentre elas, a de que vai ele apresentá-la sem mancha, ruga ou mácula.
O Senhor sabe que é necessário cumprir toda a sua obra pela Igreja, para que possa resgatá-la de forma completa. Por isto mostra aos seus discípulos:  "Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia" (v. 21). Ele diz "minha igreja"  porque ele é o único dono dela, trabalhou até a morte para que pudesse comprá-la com seu sangue e ninguém mais pudesse clamar posse sobre ela e seus membros. A Igreja de Jesus não existiria como tal sem a sua morte e ressurreição, o que lhe dá completa posse dela.
Princípio da Autoridade
Por último, podemos perceber o princípio da autoridade de Cristo sobre a sua Igreja. Para demonstrar este princípio temos, em primeiro lugar, a afirmação desta autoridade: "E as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (v.18b). O conceito é, de certa forma, muito simples: o fato da Igreja ter a autoridade da revelação de Deus, ser a propriedade e a edificação de Cristo, não há nada neste mundo, nem o próprio inferno, que possa se colocar contra ela e vencer. Assim, a verdadeira Igreja de Cristo não tem o que temer; não há poderes que possam terminá-la, porque ela pertence a Cristo. Aliás, opor-se à obra de Cristo na Igreja é obra de Satanás e é por isto que Pedro é repreendido severamente ao opor-se, quando foi dito que era necessária a morte e ressureição do Senhor.
Por outro lado, a verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra. O Senhor afirma: "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus" (v.19). Veja que o texto é muito claro em dizer que a ordem da ação de ligar e desligar começa no céu e é implementada na terra pela Igreja. Acredito que aqui temos o ensino claro, somado ao contexto de Mateus 18.15-18, onde aparece a mesma expressão, que a Igreja tem a obrigação de admitir e demitir aqueles que não cogitam das coisas de Deus. A Igreja tem a responsabilidade de abrir e fechar a porta para que as "portas do inferno" não operem dentro dela mesma. Logo, a Igreja na terra deve viver na busca de realizar a vontade soberana do Pai do céu.
E como, afinal, esta fé deve ser vivida aqui na terra?
"Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me.  Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á.  Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?  Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras.  Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino" (16.24-28).
O que o texto nos mostra é que a vida de fé na igreja deve ser vivida em torno da cruz! É, com certeza, uma vida de negação dos padrões da individualidade egoísta para viver os padrões da vida do bem-aventurado. Da mesma forma como era necessário que o Senhor fosse a Jerusalém para passar pela cruz, o cristão toma a sua cruz e segue a Jesus nos passos da ressurreição.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8. Missões e Sofrimento
Zane Pratt 28 de Janeiro de 2013 - Igreja e Ministério
Introdução
Somos de uma cultura de direitos. Os ocidentais, em geral, e os americanos, em específico, são criados para acreditar que seus direitos são invioláveis e que a vida lhes deve algo. Os nossos direitos perceptíveis vão muito além dos direitos básicos de liberdade de religião, de expressão e de reunião. Afinal de contas, a Declaração de Independência Americana diz que todos têm o direito inalienável de buscar a felicidade; e isso é facilmente traduzido, na mente das pessoas, como direito à própria felicidade. Na cultura ocidental, confronto, conveniência e segurança se tornaram a experiência de vida normal para a vasta maioria das pessoas. Em tal ambiente, não é surpresa que estas coisas tenham chegado a ser consideradas como direitos inegociáveis. Além disso, numa cultura materialista adversa ao conceito de transcendência, valores como conforto, conveniência e segurança parecem ser cruciais para a maioria das pessoas. Esses valores sobrepujam tudo mais. Qualquer coisa que ameaça ou perturba a experiência destas coisas é vista automaticamente como má.
Essa maneira de pensar penetrou na igreja cristã. Os evangélicos ocidentais cantam sobre amar a Jesus mais do que sobre qualquer outro assunto ou outra coisa. Todavia, o compromisso deles permanece frequentemente dentro do contexto de expectativas determinadas culturalmente. Como ocidentais, eles consideram inconscientemente, como muitos outros, segurança e conforto como seus valores mais importantes; por isso, eles constroem seu entendimento da vida de discipulado dentro desses parâmetros. A supremacia destes interesses parece tão autoevidente que nem mesmo ocorre a alguém examiná-los. Os evangélicos ocidentais simplesmente não pensam na possibilidade de que Deus exija deles algo que seja desconfortável ou inseguro, além do, talvez, desconforto brando de compartilharem o evangelho com alguém que se ofende no decorrer do processo.
Quando um evangelho centrado no homem é pregado, esta tendência se torna ainda mais visível. Quando pessoas ouvem que o alvo da salvação é satisfazer suas necessidades ou seus desejos por realização (ou mesmo dar-lhes uma "vida abundante" mal definida como "sua melhor vida agora"), não faz sentido alguém pensar que seguir a Jesus pode envolver sofrimento e perda. No entanto, mesmo em igrejas que mantêm um teocentrismo bíblico, esta aversão inconsciente ainda se mantém real. O sofrimento como uma parte normal da vida e um componente normal de seguir a Cristo não integra a agenda mental da maioria dos cristãos ocidentais. Quando os crentes seguem um caminho de obediência que envolve desconforto, eles são considerados heróis da fé incomuns. Quando esse caminho de obediência os coloca em um risco físico sério, são frequentemente tachados de fanáticos e considerados como potencialmente confusos. Mesmo no avanço da Grande Comissão, muitas igrejas e cristãos do Ocidente valorizam inconscientemente o dinheiro mais do que a obediência e supõem que Deus nunca pediria aos seus que arrisquem sua vida por amor à sua obra. Sofrer é visto como anormal, incomum e mau.
Nisto, assim como em muitas coisas, a experiência cultural do Ocidente está em desarmonia com a maior parte do mundo no decorrer da maior parte da História. A maior parte da raça humana não tem tido outra escolha, senão a de suportar sofrimento como uma ocorrência comum da vida. Sem os grandes escudos protetores que o Ocidente desfruta (tecnologia, medicina, sistemas de distribuição global de alimentos, paz interna e o governo da lei), a maior parte da raça humana tem vivido com a ameaça de doenças, fome, desastres naturais e violência humana, como uma condição normal. Até no Ocidente, embora o sofrimento seja restringido e ocultado, ele não pode ser eliminado verdadeiramente. Crimes ainda acontecem. Desastres naturais destroem comunidades inteiras, e crises econômicas aniquilam anos de economias numa noite. Podemos ter os melhores cuidados médicos do mundo, mas as pessoas ainda ficam doentes, e todos, por fim, morrem - às vezes, de maneira lenta e dolorosa. A diferença é que as pessoas do Ocidente se ofendem com o sofrimento, como se seus direitos fossem de algum modo violados por sua mera existência. O resto do mundo sabe que sofrer é apenas uma parte da vida.
É muito estranho que os cristãos ocidentais tenham essa visão reduzida do sofrimento. O sofrimento é um dos grandes temas da Bíblia. O fato de que os cristãos ocidentais não observam isso (ou supõem inconscientemente que o sofrimento não se aplica a eles) é um exemplo clássico de suposições culturais que afetam a interpretação da Escritura. Quer o observem, quer não, a Bíblia fala muito sobre sofrimento. Prestar atenção especial a coisas que aparecem proeminentemente na Palavra de Deus é um princípio correto de interpretação da Escritura. O evangelicalismo ocidental precisa desesperadamente recapturar uma teologia bíblica do sofrimento. Sem ela, faremos de nosso conforto e segurança um ídolo e marginalizaremos a nós mesmos no serviço da Grande Comissão.
A Bíblia fala sobre o sofrimento em várias categorias. O sofrimento existe em todos os lugares e sobrevém a todas as pessoas apenas porque este mundo é um mundo caído. Às vezes, o sofrimento acontece como consequência de mau comportamento, embora a Bíblia nos alerte contra o fazermos julgamento imediato nesses casos. O sofrimento é prometido especialmente àqueles que seguem a Jesus em um mundo que está em rebelião contra ele. E, de maneira mais intensa, o sofrimento está ligado à obra do avanço do evangelho. Em vez de considerar o sofrimento como totalmente mau, a Bíblia destaca benefícios e bênçãos que fluem do sofrimento. Por fim, a Bíblia dá instrução clara sobre como os crentes devem reagir quando o sofrimento lhes sobrevêm na sábia providência de Deus.
Sofrendo em um mundo caído
Vivemos num mundo bagunçado. A causa desta bagunça é a nossa rebelião contra Deus. Quando ele criou o mundo, ele viu que tudo era bom, e tudo permaneceu bom até que a raça humana parou de confiar em Deus e lhe desobedeceu. A queda de Adão e Eva no pecado introduziu alguma forma de sofrimento em cada área da vida. Imediatamente, o relacionamento conjugal deles foi corrompido, Adão procurou culpar Eva por seu próprio pecado, e o filho mais velho deles assassinou seu irmão mais novo. A primeira família foi também a primeira família disfuncional! Os poucos capítulos seguintes de Gênesis mostram a espiral descendente e rápida da depravação humana, chegando até ao ponto em que Gênesis 6.5 nos dá esta triste acusação: "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração". Como resultado da rebelião do homem, os relacionamentos dos seres humanos estão confusos. E os resultados incluem tudo, desde amizades destruídas e casamentos rompidos a assassinato e opressão. Toda pessoa que vive neste mundo caído está sujeita ao sofrimento apenas por causa da propensão inata das pessoas para ferirem umas às outras.
A queda afetou muito mais do que apenas os relacionamentos humanos. Ela corrompeu toda a ordem criada. Em Gênesis 3, Deus disse a Eva que sua dor no parto aumentaria grandemente e disse a Adão que sua sobrevivência dependeria de labor doloroso. Em Romanos 8, Paulo explicou que toda a criação está "sujeita à vaidade", em "cativeiro da corrupção" e, "a um só tempo, geme e suporta angústias até agora" (Rm 8.18-22). Como resultado de nossa rebelião, este mundo se tornou um lugar de desastres naturais, e nossa vida é caracterizada por doença e morte. Terremotos, furacões, tornados, secas, inundações, fomes, deslizamentos de terra, câncer, doenças de coração e coisas semelhantes, tudo resulta do fato de que este é um mundo caído. Essas coisas atingem tanto o povo de Deus como aqueles que desafiam a Deus. Em sua Palavra, Deus nunca promete que seu povo será isento de qualquer destas características dolorosas de um mundo caído. Neste mundo bagunçado pelo pecado humano, coisas más acontecem a todas as pessoas.
Devido à gravidade do pecado, é admirável que as coisas não sejam piores. Nas operações da graça comum, Deus ainda provê bênçãos para os justos e, também, para os injustos. E o Espírito de Deus restringe o mal, para que as coisas não sejam tão más como poderiam ser. Em seu cuidado providencial, Deus protege, muitas vezes, o seu povo de desastres que poderiam ter acontecido. Todo crente tem um testemunho de maneiras pelas quais Deus o protegeu de dano potencial, e, muito provavelmente, no céu descobriremos inúmeras outras ocasiões em que Deus nos protegeu, quando nem mesmo percebemos. No entanto, ele nunca promete que sempre nos protegerá e não está sob qualquer obrigação de fazer isso. O sofrimento acontece apenas porque este é um mundo caído. Algumas pessoas experimentam menos sofrimento por causa do lugar em que vivem, e parte desta diferença pode ser atribuível ao impacto da Palavra de Deus na cultura, através do tempo. Todavia, cada pessoa está sujeita à possibilidade de desastres naturais ou crimes. Cada pessoa pode ter câncer ou doença de coração; por fim, cada pessoa morre. Estas formas de sofrimento vêm apenas porque o mundo é caído, e os sofrimentos não discriminam entre crentes e não crentes.
Sofrimento por fazermos o mal
O sofrimento vem, às vezes, como resultado de fazermos o mal. Algumas coisas são apenas as consequências naturais de desconsiderarmos as orientações dadas por Deus. Alcoolismo, abuso de drogas e glutonaria causam seu próprio dano natural na raça humana. Quando alguém comete um crime e é apanhado, sua punição subsequente vem como uma consequência legal do procedimento errado. Também é verdade que em certas passagens da Escritura (como as maldições pronunciadas em Deuteronômio 28), sofrimento e desastre são ligados diretamente, por Deus, à desobediência aos seus mandamentos. No entanto, a Escritura nos adverte contra estabelecermos muito rapidamente uma conexão entre o pecado de uma pessoa e o seu sofrimento. O livro de Jó, em específico, anula esta conexão. Os amigos de Jó estavam convencidos de que as tribulações de Jó eram, de algum modo, resultado de algum pecado que ele cometera. Jó protestou em sentido contrário, e, no final, Deus afirmou que Jó, e não os seus amigos, falara corretamente sobre este assunto. Jesus rejeitou a noção de que um homem nascido cego estava sendo punido por algum pecado dele mesmo ou de seus pais (Jo 9.1-3). E, quando lhe perguntaram sobre dois grupos de pessoas que haviam morrido - um grupo, por causa de opressão política, e outro, por causa da uma torre que caíra sobre eles -, Jesus insistiu em que eles não eram pecadores piores do que os outros que haviam escapado desses infortúnios. A coisa mais segura que podemos dizer é que fazer o mal não tem frequentemente as suas próprias consequências naturais, e Deus pode usar o sofrimento como uma chamada de despertamento para pessoas que estão seguindo o caminho errado; mas devemos dizer que raramente é sábio supor que, se uma pessoa está sofrendo, ela está sofrendo por causa de algum pecado específico que cometeu.
Sofrendo como cristão
Neste assunto, o pensamento da Escritura é diretamente contrário às expectativas culturais do evangelicalismo ocidental irrefletido. O Novo Testamento tanto pressupõe como afirma que o sofrimento é normal, é uma parte expectável do que significa seguir a Cristo. Em face do que a Bíblia diz sobre a condição caída do mundo, isto não deve ser uma surpresa para o crente. Em Jesus, Deus se tornou homem e viveu entre nós, e o mundo reagiu assassinando-o. Em vez de buscar a Deus, a humanidade caída o odeia e está tentando escapar dele. Se uma pessoa fala a pecadores rebeldes sobre o Deus verdadeiro ou expõe a autojustiça deles como a fraude que ela é, tal pessoa incorre no mesmo ódio que caiu sobre Jesus. Ele deixou clara a conexão: "Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa" (Jo 15.20). Eles perseguiram a Jesus, logo, a conclusão deve ser óbvia. Em um mundo corrompido pelo pecado, é realmente verdadeiro que nenhuma obra boa fique sem punição. Paulo expressou isso quando disse: "Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos" (2 Tm 3.12). Sob a inspiração do Espírito Santo, Paulo não disse "talvez sejam", ele disse: "Serão". Sofrer por amor a Cristo é entendido como uma dádiva: "Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele" (Fp 1.29). A palavra traduzida aqui por "foi concedida" vem da família da  palavra charis, no grego, e poderia ser traduzida por "foi presenteada". A Bíblia nos diz que os apóstolos se regozijaram por terem sido considerados dignos de sofrer por causa do nome de Jesus (At 5.40-41). As igrejas em Jerusalém (At 8.1), na Galácia (Gl 3.4), em Filipos (Fp 1.29), em Tessalônica (1 Ts 2.14) e na Ásia Menor (1 Pe 4.12), todas experimentaram sofrimento, tal como os recipientes originais da Epístola aos Hebreus (Hb 10.32). Paulo atravessou sofrimento horrível (2 Co 11.23-29), como também os outros apóstolos (At 5-8). Na Escritura cristã, a chamada para seguir a Cristo é uma chamada para abandonar a tranquilidade, a segurança e o conforto deste mundo, a fim de tomar a cruz. Isto não é uma descrição de uma superfé extraordinária. É uma descrição bíblica da vida normal do cristão normal. 1
A comunhão no sofrimento de Cristo
No Novo Testamento, muitas das referências que falam sobre sofrimento dizem respeito especialmente ao sofrimento de Jesus. Há um forte sentido em que estes sofrimentos são exclusivos de Jesus. Somente ele poderia sofrer ou morrer pelos pecados do mundo. Somente ele, Deus perfeito e homem perfeito, poderia sofrer em nosso lugar para pagar a penalidade que merecíamos pagar. Nesse sentido, Jesus sofreu para que os crentes não tivessem de passar por esse sofrimento. Porque ele suportou a ira de Deus contra a nossa rebelião, aqueles que creem nele nunca terão de enfrentar essa ira. Nenhum crente jamais sofreu para compensar qualquer de seus erros aos olhos de Deus. A morte expiatória de Jesus é totalmente suficiente para pagar todos os pecados de todas as pessoas que crerão nele, em todos os lugares, em todo o tempo. Nada pode ser acrescentado a essa morte.
No entanto, a Escritura nos diz que aqueles que creem em Cristo estão agora, eles mesmos, "em Cristo". Por meio da habitação do Espírito, os crentes possuem agora uma união íntima com Jesus. Muitas bênçãos maravilhosas fluem para o povo de Deus por meio desta união com o seu Salvador. Esta mesma união os une também com o contínuo sofrimento dele no mundo, não como obra de expiação, e sim como a experiência de oposição do mundo ao amor e à santidade dele. Parte do que significa estar "em Cristo" é compartilhar da comunhão de seus sofrimentos. Paulo une o conhecer a Cristo e o poder de sua ressurreição com o compartilhar de seus sofrimentos, como se estas duas coisas fossem inseparáveis (Fp 3.10). Paulo disse aos cristãos de Corinto: "Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio de Cristo" (2 Co 1.5). Pedro ecoou este mesmo tema, ao dizer: "Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando" (1 Pe 4.13). Em Romanos 8.17, Paulo chegou ao ponto de dizer que os crentes são "herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados". Sofrer com Cristo é tão intimamente conectado com o gozo final de sua glória, que as duas coisas não podem ser separadas. A menos que Paulo tenha negado o que dissera em outra passagem, isto não pode significar que estes sofrimentos são, de algum modo, salvadores. Mas isto parece demonstrar que sofrer com Cristo é uma parte tão normal de estar em Cristo, que Paulo não podia conceber uma coisa sem a outra.
Em Colossenses 1.24, Paulo disse: "Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja". É impressionante ouvirmos Paulo falar sobre algo que faltava nas aflições de Cristo, até que compreendemos que a palavra que ele usou nesta passagem nunca é usada a respeito do sofrimento expiatório de Jesus. Paulo não disse que estava contribuindo para a obra salvadora de Cristo em morrer por nossos pecados. Antes, esta aflição de Cristo é sua experiência, em união com seu corpo na terra, da aflição deles como seu povo em um mundo hostil. Aparentemente, há uma plena medida dessa aflição que será experimentada pelo povo de Deus antes do fim desta era; e Paulo viu seu próprio sofrimento como algo que contribuía para essa medida. A intimidade da união de Cristo com seu povo é tão profunda, que os sofrimentos deles são de Cristo, e os sofrimentos de Cristo são deles.
Isto significa que cristãos confortáveis e prósperos do Ocidente devem sair por aí e tentar provocar perseguição ou afligir intencionalmente a si mesmos com práticas ascéticas? Não. O ascetismo é inútil como um instrumento de santificação (Cl 2.23), e os crentes não são ordenados a buscarem perseguição. No entanto, a condição deles deve alarmá-los. É perigosa e anormal. Eles precisam especialmente acautelar-se das seduções da respeitabilidade e da prosperidade. Precisam acautelar-se da idolatria sutil de fazerem de Jesus um meio para obterem seu próprio gozo desta vida. Precisam acautelar-se do mundanismo de colocarem seu coração nas coisas deste mundo e valorizarem possessões, saúde e segurança mais do que a glória de Cristo. Precisam examinar a si mesmos com honestidade e verificar constantemente se o desejo de manterem seu estilo de vida os seduziu a comprometer de alguma maneira a sua obediência. Precisam cultivar a mentalidade de prontidão para perder qualquer coisa e tudo, quase imediatamente, por causa do supremo valor de Cristo. Riqueza e segurança são condições perigosas nas quais um discípulo de Jesus e aqueles que vivem nelas precisam exercer cuidado especial. A condição normal de um seguidor de Cristo é participar da comunhão dos sofrimentos dele, e os que não fazem isso precisam sempre perguntar a si mesmos por que não o estão fazendo.
Sofrimento e o avanço do evangelho
Promover o avanço do evangelho é um empreendimento perigoso. Aqueles que levam a luz de Cristo às trevas de um mundo rebelde parecem experimentar um nível intensificado de sofrimento. Isto foi certamente uma experiência de Paulo. Bem no começo da vida cristã de Paulo, quando Ananias lhe foi enviado em Damasco para restaurar-lhe a visão, Deus ligou uma descrição de sua chamada missionária com estas palavras: "Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome" (At 9.16). Paulo entendeu esta ligação e a expressou a Timóteo no final de sua vida, ao descrever o evangelho e dizer sobre ele: "Para o qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre e, por isso, estou sofrendo estas coisas" (2 Tm 1.11-12). Para que ninguém pense que esta conexão entre sofrimento e serviço do evangelho era exclusiva dos apóstolos, Paulo aplicou-a também a Timóteo, dizendo: "Participa dos meus sofrimentos como bom soldado de Cristo Jesus" (2 Tm 2.3). Na verdade, esta conexão era tão íntima, que Paulo usou a expressão "participa comigo dos sofrimentos, a favor do evangelho", onde o contexto indica claramente que ele falava sobre participar da obra do evangelho (2 Tm 1.6-9).
Este padrão tem permanecido até ao presente. Aqueles que têm levado o evangelho a lugares onde ele nunca foi ouvido antes têm sido, sempre, alvos especiais de oposição e sofrimento. David Garrison, em seu livro Church Planting Movements (Movimentos de Plantação de Igreja), lista o sofrimento de missionários como uma das principais características na maioria dos lugares em que Deus tem agido de maneiras extraordinárias. 2 Isto não deve surpreender-nos. O mundo, o Diabo e a nossa própria carne se opõem, todos, à obra de Deus. Aqueles que levam o evangelho a lugares em que Cristo ainda não é conhecido têm de fazer isso com seus olhos abertos para o que possa vir adiante. Além disso, a igreja no Ocidente tem de abraçar a verdade de que o evangelho é digno de qualquer preço que Deus pede que paguemos e tem de abandonar sua aversão instintiva ao desconforto e ao perigo. A Grande Comissão não será cumprida sem sofrimento. 3 Se uma parte do corpo de Cristo demonstra que não está disposta a pagar qualquer tipo de preço, Deus os deixará de lado e usará aqueles cujos valores estão mais em harmonia com os valores dele.
Cosmovisão Bíblica e Sofrimento
Até aqui esta discussão têm sido um tanto sombria. Tudo isto significa que o cristianismo bíblico é algum tipo de ascetismo melancólico? De modo nenhum! Como disse C. S. Lewis, Deus é um hedonista no coração. 4 Há prazeres eternos à sua mão direita (Sl 16.11). A vida cristã é uma questão de "alegria indizível e cheia de glória" (1 Pe 1.8). Mesmo quando fala sobre os sofrimentos de Jesus, a Bíblia nos diz que ele suportou a cruz "em troca da alegria que lhe estava proposta" (Hb 12.2). O cristianismo bíblico não valoriza o sofrimento por si mesmo. A atitude cristã para com o sofrimento é uma questão de sistema de valores transformado. Por causa do verdadeiro tesouro, o crente está disposto a renunciar as coisas menores, como possessões, conforto temporal e segurança ou até a esta vida. A realidade não é o que você perde. A realidade é o sobrepujante valor do que você ganha.
Paulo resumiu sua perspectiva em sua carta aos cristãos de Filipos. No contexto em que Paulo falou sobre a possibilidade de ser executado por causa de sua fé, ele disse: "Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro" (Fp 1.21). Seu maior tesouro nesta vida era conhecer Cristo. O benefício ganho na morte era o estar com Cristo, o que Paulo considerou melhor do que qualquer coisa que esta vida poderia oferecer (Fp 1.23). Em qualquer circunstância, Cristo é tudo. Ele é o tesouro escondido no campo que é digno de vendermos tudo para obtê-lo (Mt 13.44). Ele mesmo é a coisa mais preciosa que já existiu nesta terra. É a verdadeira vida, a verdadeira alegria, a verdadeira paz, a verdadeira satisfação. Em Cristo, o crente tem perdão do pecado, novo nascimento, reconciliação com Deus, adoção na família de Deus, o dom do Espírito Santo, transformação progressiva na imagem de Cristo e a garantia da vida eterna na alegria e glória infinitas da presença de Deus.  Este é o verdadeiro tesouro, é um tesouro que não pode ser perdido. Todas as coisas que o mundo valoriza - possessões, conforto, saúde e a própria vida - são coisas que todos, por fim, perderão. Que pessoa racional se apega, enquanto pode, a coisas que por fim perderá, às expensas de coisas de muito maior valor que ela nunca perderá? Vista da perspectiva de Deus, a pessoa verdadeiramente sensata é aquela que suporta quaisquer perdas temporais que acompanham o tesouro genuíno e eterno. Quando os crentes assimilam o incrível valor de Cristo e de seu evangelho e o valor comparativamente menor e passageiro das coisas boas desta vida, podem ver com os mesmos olhos de Paulo, o qual, depois de tudo por que passou, escreveu: "A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas" (2 Co 4.17-18).
Evidentemente, o problema é que as coisas que podemos ver são imediatas e sedutoras, enquanto as que não podemos ver só podem ser assimiladas pela fé. Aqueles que têm muitas coisas boas que podem ver aqui têm frequentemente mais dificuldade para assimilar o valor superior das coisas que não podem ver. A maioria das pessoas prefere ter seu bolo e, também, comê-lo. Preferem gozar as coisas boas desta vida e as coisas melhores da vida por vir. Contudo, em sua sabedoria, Deus sabe que não podemos servir a dois senhores (Mt 6.24). Ele não chama seus filhos a renunciarem todas as possessões e prazeres, assim como não nos ordena buscar o sofrimento por si mesmo. Tudo que ele criou é bom, incluindo possessões e prazeres usados corretamente. Deus chama os seus filhos a valorizarem aquilo que é infinita e eternamente valioso, acima daquilo que é menos importante e temporal. Deus os chama a investir sua vida nas coisas da vida por vir. Ele os chama a reconhecer que não pertencem a si mesmos, mas vivem somente pela graça e para a glória dele. Quando essa perspectiva é atingida, a chamada para suportar sofrimento por causa do evangelho deixa de ser notícias sombrias e se torna uma parte razoável de nossa chamada jubilosa em Cristo.
Os cristãos que têm assimilado a mentalidade da cosmovisão bíblica aceitam o sofrer por Cristo porque ele é intrinsecamente digno disso. Eles acharam em Cristo o maior tesouro do mundo, e em comparação com ele todas as atrações e confortos do mundo parecem esterco coberto de ouropel. Como Paulo, eles podem dizer com honestidade: "Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo" (Fp 3.8). As coisas deste mundo não são dignas de nosso sofrimento, mas Jesus é.
Benefícios do sofrimento
Vale a pena sofrer por Jesus porque ele é muito maior do que qualquer coisa que percamos em segui-lo. Além disso, há certos benefícios que vêm ao crente por meio do sofrimento. Um desses benefícios é que o sofrimento testa e demonstra se a fé é genuína ou não. Em sua parábola dos quatro solos, Jesus falou sobre aqueles que fazem uma aceitação superficial do evangelho, mas não aprofundam suas raízes. Quando a perseguição ou as dificuldades vêm, eles voltam atrás rapidamente, mostrando que sua fé nunca fora genuína (Mt 13.20-21). Por outro lado, falando aos crentes que haviam suportado sofrimento, Pedro disse: "Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações, para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo" (1 Pe 1.6-7).
Outro benefício do sofrimento é que ele é um aliado na luta contra o pecado. Em sua primeira carta, Pedro também escreveu: "Ora, tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos também vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado" (1 Pe 4.1). O sofrimento não deve ser buscado, como o faziam os ascetas medievais, na esperança de que a autopunição intencional possa purificar o pecado. Entretanto, quando o sofrimento vem, ele é usado frequentemente por Deus para tornar Cristo mais atraente e tornar o mundo menos atraente e, assim, ajudar-nos na luta por santidade.
O sofrimento ajuda a moldar o caráter do crente na imagem de Jesus. Em uma passagem famosa, Paulo escreveu: "E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança" (Rm 5.3-4). Assim como o treinamento rigoroso molda o corpo de um atleta e o torna preparado para o esporte, assim também o sofrimento molda o caráter de um cristão e o torna preparado para o serviço do reino.
Por último, o sofrimento provê uma oportunidade para o crente experimentar o poder de Deus. Paulo mostrou ter compreendido isso, quando disse: "Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte" (2 Co 12.10). A força de Deus é supremamente maior do que a nossa, porém experimentaremos mais provavelmente essa força quando chegarmos ao fim de nossos próprios recursos e descansarmos somente nele.
Reagindo ao sofrimento
Como um cristão deve reagir quando o sofrimento lhe sobrevém? Primeiramente, não devemos ficar surpresos. "Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo" (1 Pe 4.12). A cultura ocidental pode instilar a expectativa de que a vida deve ser fácil, mas a Bíblia indica claramente o contrário, especialmente para os cristãos. Não devemos ser surpreendidos nem confundidos pelo sofrimento. Deus nos instruiu que devemos esperá-lo.
Em segundo, devemos suportar pacientemente qualquer sofrimento que nos sobrevenha, sem comprometermos nossa integridade em Cristo. O Novo Testamento ressoa este tema repetidas vezes. Eis dois exemplos. Paulo disse a Timóteo: "Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério" (2 Tm 4.5). Pedro afirmou: "Porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus" (1 Pe 2.19). A nossa tentação carnal é fazer quaisquer comprometimentos que forem necessários para banir nosso sofrimento. Deus nos chama a suportar com paciência.
Em terceiro, devemos amar aqueles que nos perseguem e orar por seu bem-estar (Mt 5.43-47). Não devemos tomar vingança daqueles que erram contra nós (Rm 12.14, 17, 19-21). Tanto a nossa carne quanto o mundo ao nosso redor nos instigam a que vindiquemos a nós mesmos, mas devemos reagir aos instrumentos humanos de nosso sofrimento como Jesus reagiu, amando até as pessoas que o mataram.
Em quarto, devemos crer em Deus em meio ao nosso sofrimento e reagir por fazermos o bem proativamente. "Os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem a sua alma ao fiel Criador, na prática do bem" (1 Pe 4.19). A consequência de nosso sofrimento está nas mãos de Deus, e podemos confiar nele quanto a essa consequência. Deus pode nos libertar por levar-nos ao lar para ficarmos com ele, mas ele nunca nos deixará, nem nos abandonará. Nada pode tirar-nos de suas mãos ou separar-nos de seu amor. Nosso dever é pagar o mal com o bem. Devemos deixar as consequências com Deus e ser proativos em fazer a obra de seu reino em face de qualquer coisa que nos sobrevenha. Precisamos guardar-nos da tentação real de entrarmos no modo de sobrevivência e, em vez disso, permanecermos ativos na propagação de sua glória.
Devemos usar nossas experiências de sofrimento para confortar os outros que sofrem. Paulo abordou isto com alguma amplitude em 2 Coríntios 1. Em vez de tornar-nos apáticos ou insensíveis, o sofrimento deve nos tornar compassivos para com os outros em suas aflições.
Devemos fixar nossos olhos em Jesus (Hb 12.1-3). Esta talvez seja a reação mais essencial de todas. Nossa carne sempre recuará do sofrimento. O mundo sempre nos dirá que somos loucos por nos colocarmos no sofrimento, em primeiro lugar. Somente por mantermos uma perspectiva bíblica sobre o supremo valor de Jesus, seremos capazes de suportar com paciência o sofrimento, enquanto abençoamos nossos perseguidores, confortamos outros que sofrem e continuamos ativamente na obra do reino de Deus. Isto exige dedicação em oração e no estudo da Palavra de Deus. Também exige encorajar e desafiar outros no corpo de Cristo, a menos que estejamos involuntariamente separados dos outros crentes. Somente em Cristo o sofrimento pode não somente ser suportado, mas também transformado em algo que glorifica a Deus e nos faz bem.
Por fim, somos até ordenados a regozijar-nos. Pedro disse: "Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo" (1 Pe 4.13). Isto parece insensato para o mundo, mas foi a reação espontânea dos apóstolos, que se regozijaram por haverem sido considerados dignos de sofrer por causa de Cristo (At 5.41). Regozijo como este só pode surgir pelo poder do Espírito Santo, em mentes que compreenderam plenamente o valor supremo de Cristo, em vidas que têm seus olhos fixados habitualmente em Cristo. Somente nele, faz sentido regozijar-nos em meio ao sofrimento.
Conclusão
Um artigo como este é difícil de ser escrito. Se eu dei a impressão de que já fiz tudo que recomendei aos outros neste artigo, esta é realmente uma impressão errada. Comparado com meus irmãos e irmãs na igreja perseguida, eu não sofri ainda. Ainda acho intimidante a perspectiva do sofrimento e da perseguição. No entanto, com base na leitura da Palavra de Deus e com base em conversas com outros irmãos que suportaram muito mais por causa do reino de Deus, aprendi uma coisa. Deus nos dá graça quando ela é necessária. "Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Hb 4.16). Ele não a dá necessariamente antes do tempo. Deus não me dá graça agora para que eu precise enfrentar algo que pode ou não acontecer-me no futuro. Todavia, no momento de necessidade, ele é sempre fiel. Nessa confiança, precisamos repudiar os temores de nossa carne e as mentiras do mundo e suportar o sofrimento como bons soldados de Jesus Cristo.
Bibliografia
1 - Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento à luz do reino de Deus, ver John Piper e Justin Taylor, eds., Suffering and the Sovereignty of God (Wheaton: Crossway, 2006).
2 - David Garrison, Church Planting Movements (Midlothian, VA: WIGTake Resources, 2004), 235-38.
3 - Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento e o avanço do evangelho, ver John Piper, Let the Nations Be Glad: The Supremacy of God in Missions, 3rd ed. (Grand Rapids: Baker, 2010), 93-131; e J. Dudley Woodberry, ed., From Seed to Fruit (Pasadena: William Carey, 2008), especialmente o capítulo 24.
4 - C. S. Lewis, Screwtape Letters (San Francisco: HarperCollins, 2001), 118.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9. O Fundamento da Igreja e a Fé
Mauro Meister 30 de Janeiro de 2013 - Vida da Igreja
Em Mateus 16 temos a narrativa de um diálogo entre Jesus e seus discípulos durante um "retiro espiritual" que fizeram pelas "bandas de Cesaréia de Filipe" (v. 13). Afastado das multidões, das controvérsias com os fariseus e outros adversários, das tremendas demandas diárias que recebia de todos à volta, o Senhor chama aqueles que estavam mais próximos à reflexão, para lhes mostrar alguns dos fundamentos sobre os quais a "sua igreja" seria continuada e firmada na face da terra.
Com a excelência da pedagogia que sempre é evidente nos Evangelhos, nosso Senhor começa a sua lição sobre os fundamentos da Igreja com uma pergunta que vai levar a uma outra: "Quem diz o povo ser o Filho do Homem?".  Certamente, o simples invocar do nome "Filho do Homem" já faria com que os discípulos refletissem a respeito das mais diversas conversas e discussões acaloradas, tidas depois das leituras dos textos da Torá aos sábados na Sinagoga. Quem é o "Filho do Homem" segundo os Salmos ou o Daniel, ou mesmo na forma como a expressão é empregada para chamar o profeta Ezequiel?  Quem é esse a quem tanto esperamos, era a pergunta no ar?
A resposta estava pronta, mostrando que havia algumas principais correntes de interpretação entre os doutos, correntes essas que se espalhavam na opinião do povo: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas... (v. 14). Mal sabia o povo que o Filho do Homem já andava entre eles a cerca de 30 anos, e pouquíssimos o reconheceram, dentre eles, alguns cegos, exatamente para mostrar que o real problema da humanidade não é a cegueira física, mas a cegueira espiritual.
Continuando com a sua sutil e certeira pedagogia, Jesus faz, então, a pergunta que realmente interessa: "Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?" (v. 15). Observe que a associação é imediata: "o Filho do Homem" e quem "eu sou".  Aqui está a primeira lição direta: Jesus é o Filho do Homem anunciado no Antigo Testamento.
Como é usual, Pedro sai na frente ao dar a resposta. É peculiar de Pedro adiantar-se em falar e agir. E a resposta de Pedro é direta: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (v. 16). A resposta é carregada de conceitos teológicos fundamentais que são trazidos pelos textos da Lei, dos Salmos e dos Profetas. Em resumo, Pedro faz uma associação teológica dizendo que o Filho do Homem é o mesmo Messias, que é o Cristo e que este mesmo é o Filho do Deus vivo, e, afinal, era este homem que estava diante dos seus próprios olhos na região de Cesaréia de Filipe. A partir desta realidade, aprendemos alguns importantes princípios no diálogo que se desenvolve.
Princípio da Revelação
Na resposta do diálogo, Jesus mostra, então, o primeiro grande fundamento sobre o qual a sua igreja está firmada: a iluminação do Espírito Santo sobre a Revelação, ou como chamarei aqui, o Princípio da Revelação.  O Senhor Jesus diz que não foi carne ou sangue que fizeram Pedro reconhecer esta verdade revelada nas Escrituras e agora exposta diante de seus próprios olhos, mas o próprio Deus. Esta é uma das fundamentais diferenças entre o cristianismo e outras religiões. A revelação que vem da parte de Deus e que corresponde à realidade dos fatos. Jesus é aquele que a Escritura diz que ele é. Jesus é aquele que ele mesmo diz ser. Jesus é aquele que Deus diz ser! Temos aqui três ideias básicas. Primeiro, que a revelação passada se cumpre em Cristo, afinal, ele é o Messias prometido. Segundo, que a revelação presente, na encarnação do Filho do Deus vivo, é superior. Não no sentido de que a revelação anteriormente dada fosse imperfeita, mas agora, ela é completa e plena. Tudo o que Deus quis revelar, mostrou-nos no seu Filho (Hb 1.3; Jo 1.18). E terceiro, aprendemos que a iluminação individual é fundamental. O verso 17 nos ensina que Deus revelou a Pedro esta verdade. Os escribas, fariseus e todos os estudiosos da época tinham as mesmas fontes que Pedro tinha, mas foi Pedro quem conectou os pontos da revelação passada com a revelação presente diante dos seus olhos. Esta mesma verdade é viva hoje quando, pela iluminação do Espírito Santo, percebemos na Escritura a verdade de Deus. Crer na revelação da Palavra de Deus é uma bem-aventurança: "Bem-aventurado és, Simão Barjonas". Sobre esta revelação é que a fé da Igreja deve ser fundamentada.
Princípio da Edificação
A resposta de Jesus a Pedro começou com uma troca de palavras: você disse que eu sou o Cristo, e eu digo, Simão Barjonas (Simão filho de Jonas), que você é pedra (o significado do apelido de Simão, Pedro). Jesus usa deste trocadilho para trazer à luz uma das mais importantes verdades a respeito da fé da Igreja: "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (v. 18).
O catolicismo romano imediatamente interpretou o jogo de palavras, Pedro e pedra, como sendo a mesma palavra e nisto construiu a doutrina do papado, sendo Pedro o primeiro desta suposta sucessão. Mas há aí uma falácia. Quando Jesus diz "esta pedra", não refere-se a Pedro, mas à verdade pronunciada por Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". É sobre esta verdade que a Igreja irá subsistir, a obra do Filho de Deus. O próprio Pedro, refletindo sobre esta verdade, fala-nos em sua primeira epístola: "Por isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido" (1Pe 2.6).
A grande lição aprendida aqui é que a Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada sobre fundamentos humanos. Sempre que interferimos e nos colocamos no lugar do fundamento verdadeiro encontramos diante de nós uma igreja falsificada, trasvestida e irreconhecível como igreja de Cristo.
Princípio da Propriedade
Da mesma forma como a igreja não pode ter fundamentos lançados por homens, ela não pode ter homens como seus proprietários! No final do verso 18, o Senhor Jesus usa a expressão "minha igreja". A igreja é dele, sua noiva, pela qual ele tem verdadeiro zelo e compromisso. Com base nesta verdade é que são feitas muitas promessas à Igreja e a respeito da Igreja, dentre elas, a de que vai ele apresentá-la sem mancha, ruga ou mácula.
O Senhor sabe que é necessário cumprir toda a sua obra pela Igreja, para que possa resgatá-la de forma completa. Por isto mostra aos seus discípulos:  "Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia" (v. 21). Ele diz "minha igreja"  porque ele é o único dono dela, trabalhou até a morte para que pudesse comprá-la com seu sangue e ninguém mais pudesse clamar posse sobre ela e seus membros. A Igreja de Jesus não existiria como tal sem a sua morte e ressurreição, o que lhe dá completa posse dela.
Princípio da Autoridade
Por último, podemos perceber o princípio da autoridade de Cristo sobre a sua Igreja. Para demonstrar este princípio temos, em primeiro lugar, a afirmação desta autoridade: "E as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (v.18b). O conceito é, de certa forma, muito simples: o fato da Igreja ter a autoridade da revelação de Deus, ser a propriedade e a edificação de Cristo, não há nada neste mundo, nem o próprio inferno, que possa se colocar contra ela e vencer. Assim, a verdadeira Igreja de Cristo não tem o que temer; não há poderes que possam terminá-la, porque ela pertence a Cristo. Aliás, opor-se à obra de Cristo na Igreja é obra de Satanás e é por isto que Pedro é repreendido severamente ao opor-se, quando foi dito que era necessária a morte e ressureição do Senhor.
Por outro lado, a verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra. O Senhor afirma: "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus" (v.19). Veja que o texto é muito claro em dizer que a ordem da ação de ligar e desligar começa no céu e é implementada na terra pela Igreja. Acredito que aqui temos o ensino claro, somado ao contexto de Mateus 18.15-18, onde aparece a mesma expressão, que a Igreja tem a obrigação de admitir e demitir aqueles que não cogitam das coisas de Deus. A Igreja tem a responsabilidade de abrir e fechar a porta para que as "portas do inferno" não operem dentro dela mesma. Logo, a Igreja na terra deve viver na busca de realizar a vontade soberana do Pai do céu.
E como, afinal, esta fé deve ser vivida aqui na terra?
"Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me.  Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á.  Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?  Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras.  Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino" (16.24-28).
O que o texto nos mostra é que a vida de fé na igreja deve ser vivida em torno da cruz! É, com certeza, uma vida de negação dos padrões da individualidade egoísta para viver os padrões da vida do bem-aventurado. Da mesma forma como era necessário que o Senhor fosse a Jerusalém para passar pela cruz, o cristão toma a sua cruz e segue a Jesus nos passos da ressurreição.