ÍNDICE
1.Uma Nota Sobre o Primeiro Artigo do Credo dos Apóstolos
2.Um Evangelho que Devemos Conhecer e Tornar Conhecido
3.A Morte de Uma Igreja
4.Deus, Você e a Igreja
5.A Glória de Deus no Chamado para Pregar às Nações
6.Quão Firme Fundamento!
7.O Fundamento da Igreja e a Fé
8.Missões e Sofrimento
9.O Fundamento da Igreja e a Fé
1. Uma Nota Sobre o
Primeiro Artigo do Credo dos Apóstolos
"No
Credo dos Apóstolos se enumera sucintamente e em ordem precisa toda a história
de nossa fé. Nele nada há que não esteja calcado em sólidos testemunhos da
Escritura." João Calvino
"Creio
em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra." Assim reza o
primeiro artigo do Credo dos Apóstolos. É bastante peculiar que um dos símbolos
mais significativos da fé cristã comece com uma confissão de que Deus é Pai.
Isso, em princípio, pode não parecer uma peculiaridade, uma vez que outras
religiões também chamam suas divindades de pai. Contudo, uma leitura mais
atenta do contexto e do significado dessa confissão revelará que tal declaração
— que reconhece Deus como Pai — não é apenas significativa para os cristãos,
mas acima de tudo exclusiva a eles.
Sem
dúvida, outras religiões também chamam suas divindades de pai, porém não da
mesma forma como os cristãos chamam Deus de Pai. Para os cristãos, a doutrina
da Trindade sempre está nas entrelinhas da confissão de Deus como Pai. A razão
disso se deve ao fato de que, antes de Deus ser o nosso pai celestial (Mt 6.9;
Ef 4.6), ele é o Pai de Jesus Cristo (Mt 26.26; Ef 1.3). Nesse caso, ao
confessar que Deus é Pai, o cristão inevitavelmente traz à memória a bondade e
o amor de Deus que entregou o seu único Filho, o "unigênito do Pai"
(Jo 1.14), para que todo aquele que crê no Filho não pereça, mas tenha a vida
eterna (Jo 3.16). Portanto, quando os cristãos chamam Deus de Pai, eles não estão
se referindo apenas à imagem de Deus como um pai celestial, mas principalmente
à imagem trinitária de Deus, ou seja, a imagem do Pai de Jesus Cristo que, em
favor da humanidade, entregou o seu único Filho, num ato de suprema bondade e
incomparável amor. 1
Em outras
palavras, ao começar a confissão dessa forma, o cristão pressupõe não apenas a
bondade do pai celestial, mas acima de tudo a incomparável e suprema bondade do
Pai de Jesus Cristo. A intenção do cristão é expressar que, antes de tudo, ele
concebe Deus como o summum bonum, isto é, como a bondade suprema que nenhuma
criatura é e jamais será capaz de ser. 2 E isso, diga-se
de passagem, é confirmado pelo próprio Jesus, quando diz que "Ninguém é
bom, a não ser um, que é Deus" (Mc 10.18). Entretanto, o Credo é ainda
mais preciso, uma vez que não pressupõe apenas a bondade suprema, mas também o
poder absoluto de Deus. Afinal, não podemos esquecer que a confissão do cristão
se dirige ao Deus Pai que é, ao mesmo tempo, todo-poderoso, criador do céu e da
terra. Ou seja, o Credo não confessa apenas a suprema bondade de Deus, mas
também o seu absoluto poder como criador de todas as coisas (Gn 1.1; Sl 19.1-6;
At 17.22-31; Rm 1.18-23).
Assim
como a confissão de Deus como Pai reflete a doutrina da Trindade, a confissão
de Deus como todo-poderoso reflete a doutrina da Criação, tal como foi herdada
da fé judaica. A doutrina da Criação parte do pressuposto de que tudo o que
existe deve sua existência a um ser de grandeza máxima: Deus. Uma vez que, por
definição, um ser de grandeza máxima é onipotente, então, nada de concreto pode
existir independente do seu poder criativo. 3 Em seu
famoso ensaio Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den Fragen
der Gegenwart [O Credo: interpretado e respondido à luz das questões de hoje],
Wolfhart Pannenberg elucidou, de forma precisa, o reflexo da doutrina da
Criação na confissão de Deus como todo-poderoso. Em suas palavras:
Para ser
preciso, nas versões gregas primitivas do Credo dos Apóstolos, a confissão Deus
todo-poderoso se expressa por meio do título grego Pantokrator, Senhor de tudo
[Allherr], termo também empregado ocasionalmente em referência a deuses gregos,
como Hermes. No entanto, muito tempo antes, o termo se tornou familiar à
tradição judaica e cristã, através da tradução grega do Antigo Testamento, na
qual a junção Kyrios Pantokrator era usada como tradução para Yahweh Sabaoth,
um dos nomes veterotestamentários de Deus. Ademais, tal tradução mostra, mais
uma vez, o quanto o poder absoluto de Yahweh permanecia no centro da fé
judaica. Portanto, a menção Deus todo-poderoso no Credo dos Apóstolos confirma
ainda mais a identidade do Deus da fé cristã com o Deus de Israel. O fato de
nada lhe ser impossível foi mostrado de forma renovada aos cristãos, por meio
da ressurreição de Jesus dentre os mortos (cf. Rm 4.24). Entretanto, também
está presente na confissão Deus todo-poderoso a noção de Deus como criador de
todas as coisas. Quando a confissão credal Deus todo-poderoso, "Senhor de
tudo", foi mais bem elucidada pela adição da referência explícita à
criação do mundo, tal fato, portanto, não passou de mera expressão daquilo que
já estava presente na noção de Deus como todo-poderoso. Se Deus é, de fato,
todo-poderoso, não apenas o mundo visível, a terra, mas também o mundo
invisível, o céu, são obra de suas mãos. 4
Portanto,
ao confessar Deus Pai todo-poderoso, o cristão afirma a unidade que há entre o
conceito trinitário de Deus Pai e o conceito cósmico de Deus todo-poderoso, o
Criador do céu e da terra. Dessa forma, professa-se a crença não apenas na
existência de Deus, mas sobretudo na existência de Deus como absolutamente
bondoso e onipotente. Isso não é pouca coisa, pois, para o cristão, a confissão
Deus Pai todo-poderoso expressa duas realidades divinas que jamais devem ser
disjuntivas, isto é, a crença cristã em Deus não admite que essas duas
realidades constituam uma relação do tipo "ou-ou" - ou Deus é todo-bondoso
ou é todo-poderoso. Pelo contrário, a relação é conjuntiva, ou seja, uma
relação do tipo "tanto-quanto" - Deus é todo-bondoso tanto quanto
todo-poderoso. Isso significa que toda a tentativa de fundamentar a crença em
Deus que privilegie um conceito em detrimento do outro será qualquer crença
menos uma crença cristã.
A crença
em Deus Pai todo-poderoso é precisamente a confissão da unidade que há entre a
bondade suprema e o poder absoluto de Deus. Sem dúvida, são realidades
distintas, porém inseparáveis na crença cristã. Vale a pena enfatizar que, em
nenhum momento, estamos dizendo que ambas as realidades são indiscerníveis.
Pelo contrário, é óbvio que são discerníveis, mas isso não quer dizer que sejam
separáveis. Ora, no mundo existem coisas que são assim, ou seja, que são
discerníveis, mas que nem por isso devem ser separadas. Da mesma forma que
existem coisas que são discerníveis e separáveis - como um galho que tanto é
distinto de uma árvore como pode ser separado dela - também existem coisas que
são discerníveis e inseparáveis - como é o caso, por exemplo, da cor vermelha
que, embora seja discernível, não pode ser separada da maçã vermelha. Logo,
existem coisas que são discerníveis embora sejam inseparáveis. Esse é o caso da
crença cristã. Podemos discernir a bondade suprema de Deus do poder absoluto de
Deus, porém não podemos separar a bondade suprema de Deus do poder absoluto de
Deus.
É
justamente por causa da inseparabilidade que há entre a bondade suprema e o
poder absoluto de Deus que o problema do mal se impõe como uma questão
demasiado espinhosa, tanto para o cristianismo como para qualquer outra
religião que sustente a crença básica em um Deus todo-bondoso tanto quanto
todo-poderoso. Vejamos a razão disso a partir de uma versão da formulação
clássica do problema do mal, que foi atribuída a Epicuro (341-270 a.C.) por
Lactâncio, um famoso apologista cristão que viveu aproximadamente entre 260-320
d.C.:
De acordo
com Epicuro, ou Deus deseja remover o mal e não é capaz; ou ele é capaz e não
deseja; ou ainda não deseja nem é capaz; ou então tanto deseja quanto é capaz.
Se desejar e não for capaz, deve ser fraco, o que não pode ser afirmado sobre
Deus; se for capaz e não desejar, deve ser malévolo, o que também é contrário à
natureza de Deus; se não deseja nem é capaz, deve ser tanto malévolo quanto
impotente, e consequentemente não pode ser Deus; agora, se tanto deseja quanto
é capaz - a única possibilidade compatível com a natureza de Deus - então
de onde vem o mal? [De Ira Dei, XIII] 5
OPÇÕES
DE EPICURO
|
IMPLICAÇÕES
|
1. Ou
Deus deseja eliminar o mal, mas não pode.
|
Deus é fraco.
|
2. Ou
Deus é capaz de eliminar o mal, mas não deseja eliminá-lo.
|
Deus é
malévolo.
|
3. Ou
Deus nem deseja e nem é capaz de eliminar o mal.
|
Deus é
malévolo e fraco.
|
4. Ou
Deus deseja e é capaz de eliminar o mal.
|
Deus é
bondoso e poderoso.
|
De acordo
com essa versão de Lactâncio, vemos que Epicuro enumerou quatro opções e suas
respectivas implicações quanto ao problema do mal:
A partir
do que já foi dito, é óbvio que, de todas as quatro opções, apenas a quarta
opção é compatível com a crença cristã. No entanto, é justamente a quarta opção
que coloca o cristão diante de uma questão difícil. Afinal, um ser todo-bondoso
não desejaria que acontecessem coisas más, que crianças desenvolvessem
leucemia, que terremotos fizessem edifícios desabarem sobre pessoas ou que
terroristas jogassem bombas em escolas repletas de crianças. Em vez disso,
desejaria impedir que tais males acontecessem, se pudesse fazê-lo. Como o Deus
do cristão não é apenas todo-bondoso, mas também todo-poderoso, logo, é óbvio
que ele pode impedir que tais males aconteçam. Mas o fato é que eles acontecem.
Então, como compreender que seja todo-bondoso um Deus que sendo também
todo-poderoso permite que tais males aconteçam?
Não
precisamos gastar páginas e páginas para convencer o leitor de que o problema
do mal é, para os cristãos, um "exercício de fé". 6 O
problema toca em questões muito difíceis, que estão relacionadas não apenas com
a nossa inteligência, mas também com o nosso sentimento religioso. Nas palavras
do filósofo Alvin Plantinga:
O Credo
dos Apóstolos começa assim: "Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do
céu e da terra...". Quem repete essas palavras e leva a sério o que elas
dizem não está apenas confessando o fato de aceitar que uma dada proposição é
verdadeira; algo muito mais forte do que isso está em jogo. A crença em Deus
significa confiar em Deus, aceitá-lo, entregar-lhe a nossa vida. Para o crente,
o mundo inteiro parece diferente. (...) O universo inteiro assume para ele um
aspecto pessoal; a verdade fundamental sobre a realidade é a verdade sobre uma
pessoa. Assim, acreditar em Deus é mais do que aceitar a proposição de que Deus
existe. Mesmo assim, inclui pelo menos isso. Não faz muito sentido acreditar em
Deus e agradecer-lhe pelas montanhas sem acreditar que há tal pessoa a quem
agradecer, e que ela é de algum modo responsável pelas montanhas. Nem podemos
confiar em Deus e entregar-nos a ele sem crer que ele existe: "é
necessário que quem se aproxima de Deus creia que ele existe e recompensa os
que o buscam" (Hb 11.6). 7
Ora, por
que o dilema de Epicuro é, para os cristãos, um exercício de fé? Em primeiro
lugar, porque os cristãos acreditam justamente em um Deus todo-bondoso tanto
quanto todo-poderoso. Em segundo lugar, porque, quando se fala da crença em
Deus, não se fala apenas de uma postura intelectual ativa, mas sobretudo de uma
postura intelectual passiva. Por exemplo, para acreditar que "o todo é
maior do que as partes", que "a menor distância entre dois pontos é
uma reta" ou que "2+2=4" basta a compreensão do que significam
essas proposições (uma postura intelectual ativa). Veja, tanto um ateu como um
crente podem conhecer e acreditar nessas mesmas verdades. Para acreditar que,
em um triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado
da hipotenusa basta uma postura intelectual ativa. A mesma coisa não pode ser
dita da crença cristã na existência de Deus. Para a crença no teorema de
Pitágoras é suficiente uma postura intelectual ativa (mera compreensão).
Todavia, para a crença em Deus se requer bem mais do que uma postura
intelectual ativa (a compreensão de que Deus é Pai e, ao mesmo tempo,
todo-poderoso). O que se requer é o que chamamos de uma postura intelectual
passiva, pois, antes de confessar Deus Pai todo-poderoso, o cristão é primeiro
afetado pelo poder do Espírito que, através da palavra de Deus, o compele a
acreditar que toda a sua vida, bem como todas as coisas à sua volta, enfim,
tudo está nas mãos de um Deus bondoso e onipotente. Como se trata de uma
crença que determina a "cosmovisão" (Weltanschauung) de uma pessoa,
então, é natural que não apenas a inteligência, mas sobretudo o modus vivendi
do cristão sejam determinados por essa crença. Entretanto, aquele que confessa
a fé cristã não apenas professa e assume uma cosmovisão, mas vive em função
dela. Isso só pode ser assim porque a crença cristã não é um produto das
faculdades intelectuais, ou seja, não é o resultado de uma mera atitude mental.
Ela é, antes de tudo, fruto do impacto da palavra de Deus que, como disse
Herman Dooyeweerd, pode ser explicado apenas pelo Espírito Santo, o qual abre
nosso coração, de forma que nossa crença não é mais uma mera aceitação dos
artigos da fé cristã, mas uma crença viva, instrumental para a operação central
da palavra de Deus no coração, o centro religioso de nossa vida. 8
Ou como
disse Agostinho de Hipona:
Amo-te,
Senhor, e minha consciência não duvida e nem vacila. Feriste-me o coração com a
tua palavra, e desde então te amei (Confissões, X, 6, 8).
A crença
do cristão em um Deus bondoso e onipotente não é fruto de pura intelecção, mas
sobretudo da ação interna do Espírito 9 que impulsiona o
cristão a crer em Deus dessa forma. Portanto, uma solução para o problema do
mal que implique a dissolução ou a disjunção da crença em Deus Pai
todo-poderoso não convence o cristão que aderiu a essa crença não apenas por
uma operação do seu intelecto, mas sobretudo pelo impacto da palavra de Deus,
através do poder iluminador do Espírito. É o poder do Espírito que por meio da
palavra de Deus convence o cristão de que Deus é todo-bondoso tanto quanto
todo-poderoso. Por isso, não é uma boa estratégia tentar modificar a crença
cristã para torná-la mais palatável diante do problema do mal — até porque
Epicuro já mostrou que tais modificações pioram ainda mais as coisas. Além do
mais, modificar a crença cristã para eliminar as dificuldades do problema do
mal não é apenas uma péssima estratégia, mas acima de tudo um sinal de
desonestidade intelectual.
Para o
cristão, faz sentido crer que o Criador do céu e da terra seja todo-poderoso.
Entretanto, não basta que o Criador mantenha apenas uma relação de poder com as
obras de suas mãos. O cristão professa que o Deus que cria todas as coisas
deseja também uma relação amorosa com a sua criação. Aquele que foi impactado
pela palavra de Deus não consegue separar, na sua crença, a bondade suprema e o
poder absoluto de Deus. E exatamente porque não consegue separar ambas as
realidades que o cristão se depara com a dificuldade de entender a origem do
mal:
Mas de
novo dizia: "Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas
bom, mas o próprio bem? Donde me vem então o querer o mal e o não querer o bem?
Será para haver um motivo para que eu seja castigado justamente? Quem colocou
isto em mim, e plantou em mim este viveiro de amargura, embora todo eu tenha
sido feito por um Deus tão doce? Se o autor é o diabo, donde veio o mesmo
diabo? Mas se também ele, por uma vontade perversa, de anjo bom se tornou
diabo, donde lhe veio, também a ele, a má vontade pela qual se tornaria diabo,
quando o anjo, na sua totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente
bom?". De novo me deixava abater e sufocar com estes pensamentos, mas não
me deixava arrastar até àquele inferno do erro, onde ninguém te confessa,
quando se julga que és tu a padecer o mal, e não o homem que o pratica. 10
Em vez de
adotar uma postura cínica e simplista, que passa a régua e diz "Não há
dificuldade alguma! A crença em Deus é tão simples. Os teólogos e filósofos é
que complicam!", o cristão precisa encarar com seriedade as dificuldades
que o problema do mal impõe. 11 Por outro lado, soluções
escapistas e demasiado retóricas, que sacrificam ou a bondade ou a onipotência
divina, são insuficientes para quem foi "ferido pela palavra de Deus"
(Agostinho). Qualquer solução que, diante do problema do mal, abra mão da bondade
divina em favor da onipotência de Deus é tão desastrosa quanto é a solução que
abre mão da onipotência divina em favor da bondade de Deus. A solução que
condiz com a crença cristã é aquela que, a despeito do mal, sustenta a crença
em Deus Pai todo-poderoso. Mesmo porque somente a crença em Deus pai
todo-poderoso pode dar para o cristão a esperança na vitória sobre o mal, no
triunfo do Bem, no Dia do Senhor, na consumação escatológica. Mas isso é
matéria para outra nota.
1 - Sobre
a noção de Deus Pai como primeira pessoa da Trindade, bem como a estrutura
trinitária do Credo dos Apóstolos, cf. J. N. D. Kelly. Early Christian Creeds.
London: Longman, 1972, especialmente os capítulos 12 e 13.
2 -
"É que nenhuma alma alguma vez pôde ou poderá conceber alguma coisa que
seja melhor do que tu, que és o supremo e o melhor bem [qui summum et optimum
bonum es]." Santo Agostinho. Confissões. Lisboa: INCM, 2004, p. 273 (VII,
4, 6).
3 - Cf.
William L. Craig. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. São
Paulo: Vida Nova, 2012, p. 181.
4 -
Wolfhart Pannenberg. Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den
Fragen der Gegenwart. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Mohn, 1982, p. 38-39.
Veja também Franklin Ferreira. Teologia cristã: uma introdução à sistematização
das doutrinas. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 74-82.
5 - Apud
Pierre Bayle. Historical and critical dictionary. Indianapolis: Bobbs-Merrill,
1965, p. 169.
6 - Em
uma conversa que tive com Franklin Ferreira, ele me disse algo bastante
esclarecedor, e que reproduzo a seguir com a sua anuência: "Se, para o
cristão, o problema do mal é a oportunidade do exercício da fé, em
contrapartida, para o incrédulo, o problema do mal é demasiado constrangedor,
na medida em que suas opções são: (1) ou a negação da existência de Deus (que
reduz o mal à mera percepção humana, relativizando-o); (2) ou o panteísmo (que
nega a existência do mal); (3) ou o dualismo (que sugere que o bem e o mal são
equivalentes). Entendo que o problema do mal não é um dilema para o cristão,
mas um exercício de fé, na medida em que esperamos o triunfo do Bem, no Dia do
Senhor, na consumação escatológica."
7 - Alvin Plantinga. God, Freedom, and Evil.
Grand Rapids, Cambridge: Eerdmans, 1974, p. 2.
8 -
Herman Dooyeweerd. No crepúsculo do pensamento. São Paulo: Hagnos, 2010, p.
255.
9 - João
Calvino designa essa ação do Espírito, que coloca o homem diante de Deus, de
testimonium internum Spiritus Sancti (testemunho interno do Espírito Santo)
[Institutas, 1.7.4-5; 3.2.33]. Calvino entende que, para o homem ouvir a voz
divina, não basta Deus falar. A razão é simples. O homem é, por natureza, surdo
para ouvir a voz de Deus e cego para enxergar a verdade revelada. Por isso,
antes de ouvir, ele precisa ser curado de sua surdez; antes de ver, ele precisa
ser curado de sua cegueira. Nas palavras de Calvino, "a palavra de Deus é
semelhante ao sol: ilumina a todos a quem é pregada, mas não produz fruto entre
os cegos. E, nessa parte, todos nós somos, por natureza, cegos. Por isso, não
pode penetrar em nossa mente, a não ser pelo acesso que lhe dá o Espírito, esse
mestre interior, com sua iluminação" [Institutas, 3.2.34]. Cf. João
Calvino. A instituição da religião cristã. Tomo II. São Paulo: Unesp, 2009, p.
58-59.
10 -
Santo Agostinho. Confissões. Lisboa: INCM, 2004, p. 273 (VII, 4, 6).
11 -
Sobre essa atitude cínica e simplista, C. S. Lewis diz: "Pois bem, então o
ateísmo é simplista. E vou lhes falar de outro ponto de vista igualmente
simplista que chamo de 'cristianismo água com açúcar'. De acordo com ele,
existe um bom Deus no céu e tudo o mais vai muito bem, obrigado - o que deixa
completamente de lado as doutrinas difíceis e terríveis a respeito do pecado,
do inferno, do diabo e da redenção. Os dois pontos de vista são filosofias
pueris. Não convém exigir uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no
mundo real são complexas. Parecem simples, mas não são". Cristianismo puro
e simples.
2. Um Evangelho que
Devemos Conhecer e Tornar Conhecido
"Irmãos,
venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei..." 1 Coríntios 15.1
Um
escritor ou pregador do evangelho teria muita dificuldade para elaborar uma
introdução melhor ao evangelho de Jesus Cristo do que esta introdução dada pelo
apóstolo Paulo à igreja de Corinto. 1 Nestas poucas
linhas, Paulo nos oferece verdades suficientes para vivermos durante toda a
vida e conduzir-nos à glória. Somente o Espírito Santo poderia capacitar um
homem a dizer tanto, com tanta clareza, em tão poucas palavras.
Conhecendo
o evangelho
Nesta
pequena passagem das Escrituras, achamos uma verdade que tem de ser
redescoberta por todos nós. O evangelho não é apenas uma mensagem de introdução
ao cristianismo. Ele é "a" mensagem do cristianismo; e o crente fará
muito bem se gastar sua vida em procurar "conhecer" a glória do
evangelho e em "tornar conhecida" esta glória. Há muitas coisas a
conhecermos neste mundo e inúmeras verdades a serem investigadas na esfera do
cristianismo, mas o glorioso evangelho de nosso Deus bendito 2 e
de seu Filho, Jesus Cristo, é superior a todas elas. É a mensagem de nossa
salvação, o instrumento de nosso progresso na santificação e a fonte cristalina
da qual flui toda motivação pura e correta para a vida cristã. O crente que
compreende algo do conteúdo e do caráter do evangelho nunca terá falta de zelo,
nunca será tão necessitado que buscará forças em cisternas rotas e vazias
feitas pelas mãos de homens. 3
De
nosso texto, entendemos que o apóstolo Paulo já tinha pregado o evangelho à
igreja de Corinto. De fato, ele era o pai espiritual daqueles crentes! 4 Entretanto,
Paulo viu a necessidade de continuar pregando-lhes o evangelho: não somente de
recordar as suas verdades essenciais, mas também de ampliar o seu conhecimento.
Na conversão deles, começaram uma jornada de descoberta que abrangeria toda a
sua vida e se estenderia pelas eras intermináveis da eternidade – a descoberta
das glórias de Deus revelada no evangelho de Jesus Cristo.
Como
pregadores e congregantes, seríamos sábios se víssemos o evangelho novamente
com os olhos deste apóstolo da antiguidade e o estimássemos como digno de uma
vida inteira de investigação cuidadosa. Embora já tivéssemos vivido muitos anos
na fé, embora possuíssemos o intelecto de Edwards e o discernimento de
Spurgeon, embora pudéssemos entender toda publicação desde os pais na igreja
primitiva, passando pelos reformadores e puritanos, até aos eruditos do tempo
presente, estejamos certos de que ainda não atingimos nem mesmo os contrafortes
deste Everest que chamamos de "evangelho". E isso será dito a nosso
respeito mesmo depois de uma eternidade de eternidades!
Vivemos
em mundo que nos oferece um número quase infinito de possibilidades, e existe
um número incalculável de opções que rivalizam por nossa atenção. O mesmo pode
ser dito sobre o cristianismo e a ampla esfera de temas teológicos que um aluno
pode estudar. Há um número quase infinito de verdades bíblicas que um homem
pode gastar a vida examinando-as. E mesmo o tema menos importante da Escritura
é digno de milhares de vidas em seu estudo. Todavia, há um tema que se eleva
sobre todos os demais e que é fundamental para o entendimento de todas as
outras verdades bíblicas – o evangelho de Jesus Cristo. É por meio desta
mensagem singular que o poder de Deus se manifesta na igreja e na vida do
crente individual.
Quando
examinamos os anais da história do cristianismo, vemos homens e mulheres de
paixão incomum por Deus e por seu reino. Anelamos ser como eles e nos
perguntamos como chegaram a possuir um zelo tão duradouro. Depois de uma consideração
diligente de sua vida, doutrina e ministério, descobrimos que eles diferiram em
muitas coisas, mas tiveram um denominador comum entre si. Todos eles tiveram um
vislumbre da glória do evangelho, e sua beleza acendeu a paixão deles e os
impulsionou a prosseguir. A vida e o legado deles provam que paixão genuína e
duradoura resulta de um entendimento cada vez mais crescente e mais profundo do
que Deus fez por seu povo na pessoa e na obra de Jesus Cristo! Não há
substituto para esse conhecimento!
O
evangelho cristão tem sido designado como "evangelho", uma palavra
que vem do latim evangellium, que significa boas novas. Esta é a razão por que
os crentes são muitas vezes chamados de evangélicos. Somos
"evangélicos" porque cremos no evangelho e o estimamos como a verdade
primordial e central da revelação de Deus para os homens. O evangelho não é um
prefácio, um provérbio ou uma explicação posterior. Não é meramente a classe de
introdução ao cristianismo, e sim todo o curso de estudo do cristianismo. É a história
de nossa vida, as insondáveis riquezas que procuramos explorar e a mensagem que
vivemos para proclamar. Por esta razão, podemos dizer que somos mais cristãos e
mais evangélicos quando o evangelho de Jesus Cristo é a nossa única esperança,
o nosso único motivo de orgulho e a nossa única e maior obsessão.
Hoje,
são realizadas tantas conferencias no âmbito do evangelicalismo, especialmente
para jovens, que têm o objetivo de estimular a paixão dos crentes por meio de
música, comunhão, palestrantes eloquentes, histórias emocionais e apelos
comoventes. Contudo, o entusiasmo que tais conferências produzem, seja ele qual
for, desaparece rapidamente. Pequenos fogos foram acessos em pequenos corações
e se acabam em poucos dias. Temos esquecido que paixão genuína e duradoura
nasce do conhecimento da verdade e, em específico, a verdade do evangelho.
Quanto mais "conhecemos" e compreendemos a beleza do evangelho, tanto
mais somos tomados por seu poder. Um vislumbre do evangelho moverá o coração
verdadeiramente regenerado a segui-lo. Cada vislumbre maior do evangelho
acelerará o seu passo, até que ele esteja correndo resolutamente em direção ao
prêmio. 5 A essa beleza o coração verdadeiramente cristão
não pode resistir. Esta é a grande necessidade do momento! É o que temos
perdido e o que temos de obter novamente – uma paixão por conhecer o evangelho
e uma paixão idêntica por torná-lo conhecido.
Tornando
conhecido o evangelho
Não
seria um exagero dizer que o apóstolo Paulo foi um dos maiores instrumentos
humanos do reino de Deus, na história da humanidade e na história da redenção.
Ele foi responsável pela propagação do evangelho em todo o Império Romano
durante um tempo de perseguição incomparável e permanece como um exemplo do que
significa ser um ministro cristão. No entanto, ele fez tudo isto por meio da
proclamação simples da mensagem mais escandalosa de todas que já chegaram aos
ouvidos dos homens. Ao considerarmos a vida do apóstolo Paulo, notamos que ele
foi um homem excepcionalmente dotado, em especial no que concerne ao seu
intelecto e zelo. Todavia, ele mesmo nos ensinou que o poder de seu ministério
não estava em seus dons, mas na proclamação fiel do evangelho. Em sua primeira
carta dirigida aos cristãos de Corinto, Paulo escreveu sua grande resignação:
Porque
não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho; não com
sabedoria de palavra, para que se não anule a cruz de Cristo. 6
Porque
tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos
a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas
para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder
de Deus e sabedoria de Deus. 7
Podemos
dizer que o apóstolo Paulo foi, acima de tudo, um pregador! Como Jeremias antes
dele, Paulo foi constrangido a pregar. O evangelho era como um fogo ardente
encerrado em seus ossos, que ele não podia suportar. 8 Aos
cristãos de Corinto, Paulo declarou: "Eu cri; por isso, é que
falei" 9 e: "Ai de mim se não pregar o
evangelho!" 10 Essa estimativa tão elevada do
evangelho e de pregá-lo não pode ser fingida, quando não existe no coração do
pregador, e não pode ser ocultada, quando existe. Deus chama diferentes tipos
de homens para levarem o fardo da mensagem do evangelho. Alguns deles são mais
solenes e sérios, enquanto outros são mais desatentos e joviais, porém, quando
a conversa muda para o assunto do evangelho, uma mudança ocorre no semblante do
pregador, e parece que você tem diante de si uma pessoa muito diferente. A
eternidade está estampada na face dele, o véu foi removido, e a glória do
evangelho brilha com uma paixão genuína. Tal homem tem pouco tempo para
histórias fantásticas, antídotos morais ou para compartilhar pensamentos vindos
de seu coração. Ele veio para pregar e tem de pregar! Não descansará enquanto
seu povo não ouvir a mensagem de Deus. Se o servo Eliezer não pôde comer
enquanto não entregou a mensagem de seu senhor, Abraão, 11 quanto
menos um pregador do evangelho ficará tranquilo enquanto não houver entregado o
tesouro do evangelho que lhe foi confiado! 12
Embora
poucos discordem do que escrevi até aqui, parece que, de modo geral, a pregação
apaixonada do evangelho está fora de moda. Ela é considerada por muitos como
algo que não possui o requinte e a sofisticação necessários para que seja
eficaz nesta era moderna. O pregador cheio de paixão que proclama ousada e
categoricamente a verdade é agora considerado um obstáculo para o homem
pós-moderno que prefere um pouco mais de humildade e de abertura para com
outras opiniões. O argumento da maioria é que temos de mudar nossa maneira de
pregar porque o evangelho parece loucura para o mundo.
Essa
atitude para com a pregação é prova de que perdemos nosso senso de direção na
comunidade evangélica. Foi Deus quem ordenou que a "loucura da
pregação" seja o instrumento para levar ao mundo a mensagem salvadora do
evangelho. 13 Isto não significa que a pregação deve ser
tola, ilógica ou bizarra. Contudo, o padrão pelo qual toda pregação deve ser
comparada é a Escritura e não as opiniões contemporâneas de uma cultura decaída
e corrupta, que é sábia a seus próprios olhos 14 e prefere
ter seus ouvidos coçados e seu coração entretido a ouvir a Palavra do
Senhor. 15
Aonde
quer que o apóstolo Paulo viajasse, ele pregava o evangelho. Faremos bem se
seguirmos o seu exemplo. Embora o evangelho possa ser compartilhado por meio de
instrumentos, não há outro instrumento tão ordenado por Deus como a pregação.
Portanto, aqueles que estão buscando constantemente meios inovadores para
compartilharem o evangelho com uma nova geração de pessoas interessadas fariam
bem se começassem e terminassem sua busca nas Escrituras. Aqueles que enviam
milhares de questionários que perguntam aos nãos convertidos o que eles mais
gostariam de ver em um culto de adoração devem compreender que as inúmeras
opiniões de homens carnais não possuem a autoridade de "um i ou um
til" da Palavra de Deus. 16 Precisamos entender que
há um grande abismo de diferenças irreconciliáveis entre o que Deus ordena nas
Escrituras e o que a cultura carnal contemporânea deseja.
Não
devemos nos admirar de que homens carnais tanto dentro como fora da igreja
desejem teatro, música e mídia no lugar da pregação do evangelho e da exposição
bíblica. Enquanto o coração de um homem não for verdadeiramente regenerado, ele
aborda o evangelho da mesma maneira como os demônios gadarenos abordaram o
Senhor Jesus Cristo: "Que temos nós contigo?" 17Sem a
obra de regeneração realizada pelo Espírito Santo, o homem carnal não tem
nenhum interesse ou apreciação verdadeira pelo evangelho, mas, apesar disso,
este milagre é operado no coração de um homem por meio da pregação do evangelho
que, a princípio, ele desdenha. Portanto, devemos pregar aos homens carnais a
própria mensagem que eles não querem ouvir, e o Espírito Santo deve agir! Sem
isto, os pecadores não podem ver a beleza do evangelho, assim como porcos não
podem ver beleza em pérolas, ou como cães não podem mostrar reverência para com
carne santificada, ou como cegos não podem apreciar uma pintura de
Rembrandt. 18 Os pregadores não fazem bem aos homens
carnais por oferecer-lhes as coisas que seu coração caído deseja, e sim por
colocar diante deles a verdadeira comida, 19 até que, pela
obra miraculosa do Espírito Santo, reconheçam-na como o que ela realmente é,
provem e vejam que o Senhor é bom! 20
Antes
de terminar esta breve discussão sobre a pregação do evangelho, temos de falar
sobre um assunto final. Apresenta-se frequentemente a teoria de que nossa
cultura não pode tolerar o tipo de pregação que foi tão eficaz durante os
grandes despertamentos e avivamentos do passado. A pregação de Jonathan
Edwards, George Whitefield, Charles Spurgeon e outros pregadores semelhantes seria
ridicularizada, satirizada e escarnecida pelo homem moderno. No entanto, esta
teoria não leva em conta o fato de que estes mesmos pregadores foram
ridicularizados e satirizados pelos homens de seus dias! A verdadeira pregação
do evangelho será sempre "loucura" para toda cultura. Qualquer
tentativa de remover a ofensa do evangelho e de tornar a pregação
"conveniente" diminui o poder do evangelho. Também frustra o
propósito para o qual Deus escolheu a pregação como o meio de salvar homens –
que a esperança dos homens não esteja em nobreza, eloquência ou sabedoria
mundana, e sim no poder de Deus. 21
Vivemos
numa cultura que está presa ao pecado com algemas de aço. Histórias morais,
máximas extraordinárias e lições de vida compartilhadas de um coração de um
palestrante querido ou de um "tutor de vida espiritual" não têm
nenhum poder verdadeiro contra essas trevas. Precisamos de pregadores do
evangelho de Jesus Cristo, que conhecem as Escrituras e são capacitados, pela
graça de Deus, a encarar qualquer cultura e a clamar: "Assim diz o
Senhor!"
1 - 1
Coríntios 15.1-4.
2 - 1 Timóteo 1.11.
3 - Jeremias 2.13-14; 14.3.
4 - 1 Coríntios 4.15.
5 - Filipenses 3.13-14.
6 - 1 Coríntios 1.17.
7 - 1 Coríntios 1.22-24.
8 - Jeremias 20.9.
9 - 2 Coríntios 4.13.
10 - 1 Coríntios 9.16.
11 - Gênesis 24.33.
12 - Gálatas 2.7; 1 Tessalonicenses 2.4; 1 Timóteo 1.11; 6.20; 2 Timóteo 1.14;
Tito 1.3.
13 - 1 Coríntios 1.21.
14 - Romanos 1.22.
15 - 2 Timóteo 4.3.
16 - Mateus 5.18.
17 - Mateus 8.29.
18 - Mateus 7.6.
19 - Isaías 55.1-2.
20 - Salmos 34.8.
21 - 1 Coríntios 1.27-30.
3. A Morte de Uma Igreja
As
sete igrejas da Ásia Menor, conhecidas como as igrejas do Apocalipse, estão
mortas. Restam apenas ruínas de um passado glorioso que se foi. As glórias
daquele tempo distante estão cobertas de poeira e sepultadas debaixo de pesadas
pedras. Hoje, nessa mesma região tem menos de 1% de cristãos. Diante disso, uma
pergunta lateja em nossa mente: o que faz uma igreja morrer? Quais são os
sintomas da morte que ameaçam as igrejas ainda hoje?
Em
primeiro lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela se aparta da verdade.
Algumas igrejas da Ásia Menor foram ameaçadas pelos falsos mestres e suas
heresias. Foi o caso da igreja de Pérgamo e Tiatira que deram guarida à
perniciosa doutrina de Balaão e se corromperam tanto na teologia como na ética.
Uma igreja não tem antídoto para resistir a apostasia quando abandona sua
fidelidade às Escrituras nem a inevitabilidade da morte quando se aparta dos
preceitos de Deus. Temos visto esses sinais de morte em muitas igrejas na
Europa, América do Norte e também no Brasil. Algumas denominações históricas
capitularam-se tanto ao liberalismo como ao misticismo e abandonaram a sã
doutrina. O resultado inevitável foi o esvaziamento dessas igrejas por um
lado ou o seu crescimento numérico por outro, mas um crescimento sem
compromisso com a verdade e com a santidade. Não podemos confundir numerolatria
com crescimento saudável. Nem sempre uma multidão sinaliza o crescimento saudável
da igreja. Uma igreja pode ser grande e mesmo assim estar gravemente enferma.
Sempre que uma igreja troca o evangelho da graça por outro evangelho, entra por
um caminho desastroso.
Em
segundo lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela se mistura com o
mundo. A igreja de Pérgamo estava dividida entre sua fidelidade a Cristo e seu
apego ao mundo. A igreja de Tiatira estava tolerando a imoralidade sexual entre
seus membros. Na igreja de Sardes não havia heresia nem perseguição, mas a
maioria dos crentes estava com suas vestiduras contaminadas pelo pecado. Uma
igreja que flerta com o mundo para amá-lo e conformar-se com ele não permanece.
Seu candeeiro é apagado e removido. Alguém disse: "Fui procurar a igreja e
a encontrei no mundo; fui procurar o mundo e o encontrei na igreja". A
Palavra de Deus é clara: ser amigo do mundo é constituir-se inimigo de Deus.
Quem ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Há pouca ou quase nenhuma
diferença hoje entre o estilo de vida daqueles que estão na igreja e daqueles
que estão comprometidos com os esquemas do mundo. O índice de divórcio entre os
cristãos é tão alto como daqueles que não professam a fé cristã. O número de
jovens cristãos que vão para o casamento com uma vida sexual ativa é quase o
mesmo daqueles que não frequentam uma igreja evangélica. A bancada evangélica
no Congresso Nacional é conhecida como a mais corrupta da política brasileira.
A teologia capenga produz uma vida frouxa. Precisamos voltar aos princípios da
Reforma e clamar por um reavivamento!
Em
terceiro lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela não discerne sua
decadência espiritual. A igreja de Sardes olhava-se no espelho e dava nota
máxima para si mesma, dizendo ser uma igreja viva, enquanto aos olhos de Cristo
já estava morta. A igreja de Laodicéia considerava-se rica e abastada, quando
na verdade era pobre e miserável. O pior doente é aquele que não tem
consciência de sua enfermidade. Uma igreja nunca está tão à beira da morte como
quando se vangloria diante de Deus pelas suas pretensas virtudes. O cristão não
deve ser um fariseu. O fariseu aplaudia a si mesmo por causa de suas virtudes,
mas olhava para os publicanos e os enchia de acusações descaridosas. O cristão
verdadeiro não é aquele que faz um solo do hino "Quão grande és tu" diante
do espelho, mas aquele chora diante de Deus por causa de seus pecados.
Em
quarto lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela não associa a doutrina
com a vida. A igreja de Éfeso foi elogiada por Jesus pelo seu zelo doutrinário,
mas foi repreendida por ter abandonado seu primeiro amor. Tinha doutrina, mas
não vida; ortodoxia, mas não ortopraxia; teologia boa, mas não vida piedosa.
Jesus ordenou a igreja a lembrar-se de onde tinha caído, a arrepender-se e a
voltar à prática das primeiras obras. Se a doutrina é a base da vida, a vida
precisa ser a expressão da doutrina. As duas coisas não podem viver separadas.
Doutrina sem vida produz orgulho e aridez espiritual; vida sem doutrina
desemboca em misticismo pagão. Uma igreja viva tem doutrina e vida, ortodoxia e
piedade, credo e conduta!
Em
quinto lugar, a morte de uma igreja acontece quando falta-lhe perseverança no
caminho da santidade. As igrejas de Esmirna e Filadélfia foram elogiadas pelo
Senhor e não receberam nenhuma censura. Mas, num dado momento, nas dobras do
futuro, essas igrejas também se afastaram da verdade e perderam sua relevância.
Não basta começar bem, é preciso terminar bem. Falhamos, muitas vezes, em
passar o bastão da verdade para a próxima geração. Um recente estudo revela que
a terceira geração de uma igreja já não tem mais o mesmo fervor da primeira
geração. É preciso não apenas começar a carreira, mas terminar a carreira e
guardar a fé! É tempo de pensarmos: como será nossa igreja nas próximas
gerações? Que tipo de igreja deixaremos para nossos filhos e netos? Uma igreja
viva ou igreja morta?
4. Deus, Você e a Igreja
O
que você pensa acerca da Igreja de Cristo? Como você a vê? Qual a importância
dela em sua vida? Estas são questões muito importantes, cujas respostas revelam
sua situação diante de Deus. Quero dizer, seu amor ou desprezo pela igreja
revelam seu amor ou desprezo para com o próprio Deus. Por isso, através deste
artigo, quero fortalecer sua visão, esperança e amor pela igreja de Cristo. Porém,
antes de apresentar-lhe meus argumentos principais trago à sua mente algumas
frases anotadas na capa de minha Bíblia:
Onde
quer que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida com pureza, ali existe uma
igreja de Deus, mesmo que ela esteja repleta de falhas. João Calvino
A
igreja não é uma democracia na qual escolhemos a Deus, mas uma teocracia na
qual Ele nos escolheu. John Blanchard
Não
vamos à igreja, somos a igreja. Ernest
Southcoot
Sei
que a Igreja tem suas tolices, incoerências e irrelevâncias; mas eu a amo,
assim como amo minha mãe, a despeito de suas fraquezas e rugas. Stanley Jones
Estas
frases expressam a opinião de alguns homens, mas nada como a opinião do próprio
Deus! Por isso, baseando-nos em 1 Coríntios 3, vejamos o que Deus pensa sobre a
igreja; como ele a vê; como ele se relaciona com ela; o que ele está fazendo
por ela.
Como Deus
vê a igreja
Escrevendo
para a igreja em Corinto, o apóstolo Paulo é usado pelo Espírito Santo para nos
revelar como Deus vê a igreja. Usando figuras de linguagem, ele nos ensina que
o Senhor vê a sua igreja como "cooperadores de Deus" (3.9a);
"lavoura de Deus" (3.9b); e "edifício de Deus" (3.9c).
Interessante que no original grego a palavra Deus precede os substantivos,
ficando assim: "De Deus somos cooperadores; de Deus lavoura, de Deus
edifício sois vós". E o propósito disto no grego é salientar vigorosamente
que nós, os instrumentos, não temos importância, e enfatizar que tudo é de
Deus, e todos pertencem a Deus. Tanto é que no verso 6 e 7 Paulo confirma esta
ideia: "Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer; de modo que
nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que
efetua o crescimento".
Através
destes versos Deus está dizendo: "Dentro da minha igreja não há lugar para
personalidades indispensáveis!" Isto significa que devemos pensar menos
acerca de nós mesmos ou de qualquer outro líder humano. Eu e você passaremos,
mas a igreja prosseguirá vitoriosa. Como alguém disse: "Deus sepulta seus
servos, e prossegue nos seus projetos". Por isso precisamos dizer uns aos
outros: "Na igreja de Cristo, eu não sou indispensável! Você não é indispensável!
Somente Deus é indispensável!" Alguém disse que pastores e líderes vivem
estressados porque se esquecem de quatro importantes leis espirituais, que são:
Deus
existe!
Você não é ele!
Arrependa-se! Pare de "dar uma de Deus".
Faça sua parte e descanse nele.
Deus
Honra Sua Igreja
O
texto diz: "Porque de Deus somos cooperadores..." (9a). O que
significa isto? Isto significa que o Deus todo-poderoso, autossuficiente, e
completo em si mesmo, na sua condescendência nos confere a honra de trabalhar na
sua seara. Isto me faz lembrar quando eu tinha quatro anos e gostava de ajudar
meu pai a lavar o carro. Lembro-me do dia que estraguei boa parte da pintura do
capô. Hoje sei que eu mais atrapalhava do que ajudava, porém meu pai me honrava
diante de toda família dizendo que eu o ajudava a lavar o carro. Esta era uma
forma dele me aproximar de si mesmo, de me amar, de me ensinar a crescer. Da
mesma forma, o nosso Deus "que não é servido por mãos de homens, como se
necessitasse de algo..." (At 17.25a) nos confere a honra de sermos seus
cooperadores.
Deus
Fortalece Sua Igreja
Ao
mesmo tempo em que o texto exalta a primazia da ação sobrenatural e soberana de
Deus na edificação da sua igreja, o próprio texto não esconde o fato dele usar
seu povo para abençoar o seu povo. No início do capítulo vemos Deus usando
Paulo para alimentar a sua igreja (3.2). Depois vemos Deus usando os discursos
de Apolo e o ensino de Paulo para conferir o dom da fé a eles (3.5). E, logo em
seguida vemos Deus usando a vida de Paulo e Apolo, para plantar e regar (3.6).
Logo, concluímos que "Deus fortalece seu povo através do seu povo".
Isto
não é uma teoria fria e morta, mas uma prática comum e observável dentro de
toda igreja de Cristo. A cada encontro, formal ou informal, Deus mesmo fortalece
seus filhos. Se alguém está necessitado, Deus usa seu povo para suprir sua
necessidade. Se alguém está passando por uma luta, ele usa seu povo para
fortalecê-lo! Se alguém está entristecido, ele usa seu povo para consolá-lo! Se
alguém está confuso, ele usa seu povo para aconselhá-lo! Se alguém está caído,
ele usa seu povo para levantá-lo! Se alguém conquista uma vitória, ele usa seu
povo para alegrar-se com ele! Por isso, quando a igreja de Cristo se reúne, às
vezes ela se assemelha a um salão de festa cheio de celebração! Às vezes, com a
sala de emergência de um hospital que acolhe e trata os feridos! Às vezes, como
uma reunião familiar permeada com palavras e atitudes de apoio, carinho e
exortação! E, às vezes, com uma escola, um centro de ensino e aprendizado. Num
mesmo culto, Deus trata das diversas necessidades do seu povo, através da
instrumentalidade do seu povo.
Deus
Avalia Seu Povo
Dentro
de um capítulo de aplicação corporativa encontramos quatro versículos com
aplicação individual. Isto significa que Deus se relaciona com a igreja como um
todo, e ao mesmo tempo com cada membro individualmente. Paulo fala do seu
ministério inicial a favor da igreja e a partir daí passa a falar da
responsabilidade de cada membro na edificação da mesma – "veja cada um
como constrói" (10). Seu argumento é que o próprio Deus avalia como cada
membro realiza a obra da edificação do corpo de Cristo; que Deus vê quem
edifica sobre o fundamento prescrito, que é Cristo (vs. 10-11); Deus vê quem
ensina e vive a verdade do evangelho (ouro, prata, pedras preciosas). E Deus vê
quem fornece um ensinamento inadequado, ou deixa a desejar no seu testemunho
(madeira, feno, ou palha) (v.12).
Mas
qual o resultado desta avaliação divina? Primeiro: Deus recompensa os fiéis!
"Se permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edificou, esse
receberá galardão" (14). Segundo: Deus disciplina os infiéis! "Se a
obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano..." (15a). Terceiro: Deus
salva a todos! "... mas esse mesmo será salvo, todavia, como que através
do fogo" (15b). É maravilhoso saber que Deus salva todos os que são seus
filhos! Que ele não desiste de nenhum deles! Nem daquele que faz a obra do
Senhor relaxadamente. Contudo, devemos nos perguntar: Por que desperdiçar o
privilégio de glorificar com o nosso melhor àquele que é digno de toda honra,
glória e louvor? Por que desprezar os galardões que Deus promete aos fiéis?
Deus
Protege Sua Igreja
Já
ouvi crentes usando os versos 16 e 17 deste capítulo para combater a
glutonaria, tabaco, promiscuidade, etc. Porém nestes versos o autor já voltou a
falar da igreja de forma corporativa. Sim, o nosso corpo é o templo do Espírito
Santo (1Co 6.19), mas estes versos afirmam uma outra maravilha: Que, de forma
especial, nós, a igreja de Cristo, somos santuário de Deus (16); e que, se
alguém atacar a igreja, Deus mesmo o destruirá! Pois a igreja é território
sagrado (17).
Isto
significa que, se durante um culto alguém decidir contar o número de pessoas
presentes, não deve se esquecer da pessoa mais importante: O próprio Deus!
Muitos
de nós estamos preocupados. Vemos certas barbaridades sendo introduzidas ao
cristianismo (ex.: misticismo, pragmatismo) e tememos pelo presente e futuro da
igreja. Porém, há uma palavra de consolo para nós nestes versos! Explico isto
com a seguinte pergunta: O que você faz para defender um leão? Resposta: Você
simplesmente senta e assiste ele defender-se a si mesmo! Da mesma forma, a
igreja é o corpo de Cristo, e Cristo é o leão de Judá! Podemos ficar
tranquilos! Cristo sabe muito bem como proteger, cuidar e preservar sua igreja.
Confie nele!
Deus
Abençoa Sua Igreja (21-23)
Como
muitas igrejas em nossos dias, a igreja em Corinto estava cometendo um grande
erro. O erro de depender e se orgulhar de certos líderes a quem estavam ligados.
Então, Paulo conduz seus pensamentos para os maiores e melhores tesouros que
eles já possuíam em Cristo. Ele os recorda que todos os mestres, dons,
sabedoria, e até as riquezas e coisas criadas têm sua origem em Cristo, e que,
em Cristo isto tudo já lhes pertencia! Por isso, desprezar a Cristo a fim de
depender, exaltar e apoiar-se em alguns mestres humanos é tolice! É
empobrecer-se! (21-22).
Nós,
igreja de Cristo, precisamos apreciar esta grandiosa declaração e demonstração
de amor! Nestes versos, Paulo revela que Deus criou o universo, para sua
própria glória, pensando na sua igreja! Que ele espalhou as estrelas no céu por
causa da igreja! Que ele criou as flores, montanhas, vales, e pássaros para o
aprazimento da sua igreja. Que ele concedeu dons aos homens pensando na igreja!
Assim como ele realizou a grande obra da redenção por causa da sua igreja! Não
podemos nos esquecer disto! Não devemos desviar a devoção e louvor devido a
ele! Nenhum herói da fé, mártir, pai da igreja, teólogo, autor, pastor ou
cantor evangélico merece os elogios e dependência que devemos somente a ele.
Cristão,
espero que estas considerações o ajudam a fortalecer sua visão, esperança e
amor pela igreja de Cristo. Se você encontra-se numa igreja onde a Palavra de
Deus é pregada e ouvida com pureza, não se desanime diante dos erros e
fraquezas. Faça sua parte, dê um bom testemunho, encoraje seu pastor a
continuar pregando a Palavra e ore para que o Espírito a use poderosamente na
salvação dos perdidos e edificação dos salvos.
E
se o querido leitor ainda não faz parte da igreja de Cristo, o desafio de Deus
para você é o seguinte: Creia que "Jesus Cristo morreu pelos nossos
pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro
dia" (1Co 15.3). "Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor
e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo"
(Ro 10.9). E assim você também será introduzido ao que há de mais importante
nesta vida: A igreja de Deus!
5. A Glória de Deus no
Chamado para Pregar às Nações
Gostaria
de usar o texto de Jeremias 1.4-19 para tratar de três temas vitais ao
ministério cristão de ensino: a vocação, a pregação e seu conteúdo, e a coragem
necessária para permanecer firme. Na verdade, gostaria de usar o texto de
Jeremias como um texto de formação, que entrelace nossas vocações de ensino à
vocação de Jeremias, que nos ajude a recuperar o senso de chamado para pregar a
mensagem de Deus às nações. Antes de continuar, fazem-se necessárias algumas
palavras introdutórias. Jeremias, que significa "aquele que exalta o
Senhor", começou seu ministério no reinado de Josias, que iniciou uma
reforma e renovação da aliança, de curta duração. Ele pertencia a uma família
de sacerdotes e recebeu seu chamado quando tinha 18 anos, na segunda década do
século sétimo a.C., na pequena cidade de Anatote, a cinco quilômetros de
Jerusalém. Na verdade, Jeremias viveu em meio a um turbulento momento político
na história da região: a Assíria entrara em declínio como império, o Egito tentava
recuperar sua influência, e a Babilônia era o poder em ascensão no leste. Pouco
depois, Josias foi morto em Megido e, em rápida sucessão, três de seus filhos,
Joacaz, Jeoaquim e Zedequias, e um neto, Joaquim, sucederam-no no trono. Por
não temerem a Deus, esses reis conduziram o povo da aliança aos eventos mais
devastadores da história de Judá: a invasão babilônica, a destruição do templo
e o exílio no estrangeiro.
Nós
hoje vivemos numa encruzilhada da história. A igreja tem crescido globalmente.
Aqui no Brasil há muitos pastores devotos, crentes sérios, igrejas saudáveis,
sinais da obra do Espírito Santo. Ao mesmo tempo, há superficialidade e
infidelidade bíblica, traição ministerial, divisões, idolatria por crescimento
de igreja a qualquer custo. Na esfera pública temos governos populistas,
corrupção, pessoas morrendo em portas de hospitais, violência crescendo
assustadoramente e impunidade ampla, geral e irrestrita. Há preocupantes sinais
de ameaças à liberdade de culto e de expressão. Diante desse quadro, (1) qual
deve ser a imagem cultivada por aqueles chamados a obedecer à ordem de pregar a
palavra de Deus? (2) Qual deve ser o conteúdo de tal mensagem? (3) Como aqueles
chamados a pregar essa soberana Palavra devem se portar?
1.
Vocação (4-8)
Vamos
nos deter um pouco nos versículos 4-7: O relato começa com a afirmação "a
mim me veio, pois, a palavra do Senhor" (Jr 1.4). Essas palavras ou
expressões equivalentes ocorrem outras vezes no livro (Jr 7.1; 11.1; 14.1;
16.1; 18.1). A palavra way'hi ("continuou a vir") sugere que este
chamado veio não de forma súbita, mas de forma persistente. "Antes que eu
te formasse": estas primeiras palavras do Senhor a Jeremias revelam que
foi iniciativa de Deus o fato de ele ter sido escolhido para ser profeta. O
nome de Deus domina a cena: nessa pequena passagem o nome do Senhor é citado 12
vezes! Ele o predestinou para anunciar a mensagem, e antes mesmo de seu
nascimento, Jeremias foi consagrado ("separado",
"santificado") por Deus para essa tarefa (Jr 1.5; cf. Gl 1.15). Desde
a concepção até a consagração, Deus tinha preparado cada etapa do processo,
conhecendo todas as necessidades e sabendo como supri-las. Em outras palavras,
Jeremias recebeu o caráter e a personalidade necessários para a obra profética.
"E te constituí": significa "dei", isto é, antes mesmo de
Jeremias nascer ele foi dado. Essa é a maneira de Deus agir. Ele fez isso com
seu próprio Filho, Jesus Cristo (Jo 3.16). Deus o ofereceu às nações. Deus
continua enviando aqueles que ele chama a pregar às nações, em obediência ao
chamado e em imitação a seu Filho (1Co 11.1).
Por
outro lado, a reação de Jeremias mostra que ele não era voluntário (Jr 1.6).
Ele menciona sua idade: "Eis que não sei falar, porque não passo de uma
criança". Na verdade, ele não queria dizer que era uma
"criança", mas que ainda não chegara aos trinta anos, que era o tempo
quando os levitas iniciavam oficialmente seu ministério, sendo, portanto, muito
jovem para atender o chamado. Mas Deus responde a objeção: "Não digas: Não
passo de uma criança" (Jr 1.7). A compreensão de que ele tinha sido
escolhido como instrumento da revelação de Deus para uma geração endurecida
forneceu a convicção de que sua missão provinha de Deus, e levou-o a proclamar
a palavra do Senhor a uma nação teimosa e rebelde. E ele recebeu forças da
comunhão constante com Deus em oração (cf. Jr 12-20, as cinco
"confissões" de Jeremias). "Porque a todos a quem eu te enviar
irás; e tudo quanto eu te mandar falarás": Quanto mais próximo do exílio,
o cumprimento da profecia, mais sua timidez inicial é substituída por coragem,
o que mostra o quanto ele amadureceu em sua vocação.
Como
acontece com Jeremias no versículo 8, os servos de Deus receberam muitas vezes
a ordem "não temas", como Abraão (Gn 15.1), Moisés (Nm 21.34; Dt
3.2), Daniel (Dn 10.12, 19), Maria (Lc 1.30), Simão (Lc 5.10) e Paulo (At
27.24). Diante do medo, uma emoção terrível e paralisante, Deus assegura que
sustentará seu servo. Jeremias não estaria livre de oposição e até de perigo
físico, porém cumpriria seu ministério em todas as dificuldades, porque Deus
estaria com ele para fortalecê-lo. Portanto, Jeremias submeteu-se à sua
vocação. E, mesmo sem sair de Jerusalém, ele seria um profeta às nações – a
mensagem de Deus ecoaria por Egito, Filistia, Moabe, Amom, Edom, Damasco,
Quedar, Hazor, Elão e Babilônia (Jr 46-51). Talvez, como Jeremias, nunca
viajemos para fora de nosso país para anunciar a mensagem de Deus. Mas, ainda
assim, podemos ser instrumentos para levar a Palavra de Deus às nações.
Parece
que o estilo de vida dos homens que exercem hoje a vocação profética no Brasil
está em ruínas. Esta vocação proclamadora foi substituída por estratégias
comandadas por burocratas religiosos munidos de planos de negócios. Pensa-se
hoje no pastor como alguém "que faz as coisas" ou que "faz as
coisas acontecerem". Pastores construtores de templos. Pastores
administradores. Pastores executivos. Pastores seniores. Essa definição se
aplica aos modelos básicos de liderança em nossa cultura: políticos, homens de
negócios, celebridades e atletas. Mas nossa vocação precisa ser modelada por
Deus, pelas Escrituras e pela oração. O elemento central da vocação profética
não é de alguém "que faz as coisas", e sim de alguém colocado na
comunidade para estar atento e chamar a atenção ao que Deus fala em sua
Palavra, palavra de juízo e denúncia, mas palavra de graça, misericórdia e
renovação.
Neste
sentido, precisamos relembrar: Deus chama alguns membros da santa comunidade
sacerdotal para pregar o evangelho, as boas novas da livre graça de Deus. Essa
vocação é uma obra interna de Deus, que chama os servos da Palavra. E embora
seja interno, o chamado para o ministério inevitavelmente virá acompanhado por
um testemunho externo. Ou seja, aqueles chamados para a pregação da Palavra
demonstrarão dons e aptidões para o exercício do ministério. Eles são equipados
pelo Espírito Santo para pastorear, evangelizar, pregar e ensinar – e frutos
visíveis serão evidenciados por conta desse chamado interno. E será confirmado
diante da igreja este chamado interno, por conta dos frutos externos da obra da
graça que já aconteceu interiormente. Portanto, a vocação profética não pode
ser reduzida a mero trabalho. Este pode ser quantificado e avaliado. Pode-se
dizer se este chegou ao fim ou não, assim como se pode ser contratado ou
demitido. Uma vocação não é um trabalho. A vocação profética é sobre a pregação
da Palavra, sobre a administração dos sacramentos, sobre chamar o povo de Deus
a adorar o Pai, Filho e Espírito Santo, é sobre lembrar semanalmente à comunidade
da fé os privilégios e responsabilidades da aliança.
Karl
Barth afirmou que quem não houver sido chamado para pregar, que não o faça,
pois não será pequeno mal que causará se subir ao púlpito sem haver sido
escolhido por Deus para isto. Por outro lado, se você foi chamado para anunciar
a santa Palavra, você só tem um, e um único oficio: anunciar fielmente
"todo o desígnio de Deus" (At 20.27), portando-se como alguém que
pertence exclusivamente ao Senhor.
2.
Conteúdo e Pregação (9-16)
Analisando
os versículos 9-10, percebemos que tocando na boca do jovem, Deus simboliza a
comunicação de sua mensagem. Agora o Senhor proclama sua mensagem às nações
tendo Jeremias por arauto. Para transmitir esta mensagem, Deus usa metáforas
baseadas na agricultura e na construção, constituída por três pares de verbos,
os dois primeiros negativos e o terceiro positivo: o profeta deve arrancar e
derribar, destruir e arruinar para então edificar e plantar (Jr 1.10). Toda a
corrupção na nação deve ser arrancada e derrubada, e somente depois disto é que
se pode edificar e plantar de novo. Portanto, a mensagem do profeta teria duas
funções. Em primeiro lugar, essa mensagem era uma declaração sobre a maldição
da aliança que seria executada em seu devido tempo (Dt 28.1-68). Em segundo
lugar, as bênçãos da aliança se tornariam realidade. Deus quer renovar,
reconstruir e restaurar seu povo, mas antes da renovação é necessária a remoção
radical do pecado e da infidelidade à aliança e eleição. A ruína é inevitável,
enquanto a nação persistir no pecado, mas a palavra de renovação oferece
esperança de restauração. Usando a linguagem do Novo Testamento, Deus tem
primeiro de remover o pecado, antes de o pecador começar a crescer na graça e
no conhecimento de Jesus Cristo.
Jeremias,
entretanto, é humano. Ele reage inicialmente com medo e inadequação. São
reveladas então a Jeremias duas visões inaugurais, descritas nos versículos
11-13. A primeira é a de "uma vara de amendoeira" (Jr 1.11). Em
hebraico, a palavra "amendoeira" (shaqéd) e o verbo "eu velo
sobre" (shoqéd) têm som semelhante. Há um jogo de palavras aqui que
ilustra a prontidão com que Deus cumpre suas promessas. Sempre que o profeta
visse a cada primavera uma amendoeira em flor, ele seria lembrado de que o
Senhor está observando para assegurar que sejam cumpridas todas as palavras
transmitidas em seu nome (Jr 1.12). A segunda visão tinha um tom mais sinistro,
"uma panela ao fogo" (ou "fervendo"), literalmente uma
panela sobre a qual alguém sopra, e cuja boca se inclina do Norte, indicando
que seu conteúdo se derrama em direção ao sul (Jr 1.13). Essa visão indica a
invasão babilônica, que virá do norte (Jr 20.4).
Percebemos
nos versículos 14-16 que o exército da Babilônia executará o propósito de Deus
de punir a idolatria de Judá e a quebra da aliança do Sinai. O verbo qtr,
"queimar incenso" (Jr 1.16), é usado em outras passagens significando
queimar a gordura dos sacrifícios (cf. 1Sm 2.16; Sl 66.15). A tensão entre o
culto aos ídolos e a adoração exclusiva ao Senhor chegaram ao clímax. A guerra
viria para interromper um modo de vida inútil, impuro e indolente, obrigando o
povo a voltar seus olhos para o que é essencial e eterno. Mas Jeremias não vai
trazer o fim por meio da espada ou da ação política. Ele é chamado a proclamar
a palavra do Senhor quantas vezes for necessário, custe o que custar, e um alto
preço será exigido dele.
Aqueles
chamados ao ofício de anunciar a Palavra de Deus não são chamados a trocar a
mensagem da aliança pelo discurso político. Nenhuma ideologia é absoluta e nem
pode ser confundida com o evangelho. Sempre que a igreja ou mesmo pastores e
teólogos identificaram determinada ideologia com o reino de Deus ou com a
mensagem bíblica, essa foi não apenas distorcida, mas acabou sendo perdida.
Portanto, a preocupação primeira daqueles chamados a anunciar a Palavra de Deus
não é tanto com a mudança da sociedade civil, mas com a reforma e renovação da
igreja por meio da mensagem de Deus. Aqueles chamados ao ofício de anunciar a
palavra de Deus não são chamados para lidar com aqueles que ouvem e se submetem
à mensagem profética como se fossem problemas. É fácil reduzir as pessoas a
problemas, pois na maior parte das vezes é fácil solucionar esses problemas.
Mas os profetas são chamados a conduzir as pessoas dos ídolos a Deus, da
rebelião para a aliança, por meio da Palavra, da adoração e da oração. Aqui
somos meros instrumentos nas mãos de Deus. As pessoas não devem ser vistas como
problemas em busca de solução, mas como pecadores que podem ser renovados à imagem
de Deus. Portanto, a vocação é sobre conduzir as pessoas a Deus, por meio de
sua Palavra, em humildade. Trata-se de permanecer junto ao povo.
A
tentação à qual os profetas estão sujeitos é considerar Deus uma mercadoria,
utilizá-lo para legitimar a idolatria (cf. Jr 23.21-40). Qual é, então, o
conteúdo da mensagem profética? Deve-se conhecer o Senhor (Jr 8.7; 24.7;
31.31-34). Este conhecimento se dá por meio do Messias, o Renovo Justo,
descendente de Davi, que executa juízo e justiça na terra (Jr 33.14-18), a
fonte de águas vivas (Jr 2.13), o bálsamo de Gileade (Jr 8.22), o Bom Pastor
(Jr 23.4), o Renovo Justo (Jr 23.5), o Senhor justiça nossa (Jr 23.6), aquele
que trará a nova aliança (Jr 31.31-34). E este novo conhecimento redunda em
preocupação pelo aflito e necessitado e na prática da justiça e retidão.
A
mensagem profética é o convite para "voltar" (Jr 4.1-2; cf. 9.24;
22.2, 13, 15; 23.5; 33.15). Este termo e seus cognatos foram usados quase cem
vezes neste livro e são o significado literal da palavra
"arrependimento". Implica voltar-se dos próprios caminhos para a
aliança (Jr 6.16), é um chamado à comunidade para um retorno à
"verdade", "juízo" e "justiça". Em suma, o povo é
chamado ao arrependimento e ao conhecimento de Deus por meio do Messias. E o
remédio de Deus para o coração enfermo (Jr 17.9) será gravar sua lei no coração
da nova comunidade (Jr 31.31-34). Portanto, o verdadeiro profeta é aquele que
procura distanciar o povo do mal, enfatizando as exigências de Deus na aliança
(Jr 23.14, 22).
Usando
a linguagem do Novo Testamento, aqueles dentre nós chamados ao santo ministério
da Palavra, devem pregar as realidades grandiosas e magníficas de Deus e do
Espírito Santo, da Escritura e da criação, da cruz de Cristo e da aliança, da
salvação e de uma vida santa, a oração, o batismo, a santa ceia. E isso deve
ser pregado no púlpito, nas salas de aula e na visitação pastoral, ansiando por
vidas moldadas pela Palavra de Deus, renovada pelo Espírito Santo, de uma
humildade disposta ao sacrifício, que erguem a Deus um louvor santo, sofrendo
sem perder o contentamento, orando sem cessar, perseverando na santidade.
3.
Segurança (17-19)
Na
seção composta dos versículos 17-19 podemos ver que o desânimo que o profeta
sentiu ao entender o conteúdo da profecia é combatido por uma ordem direta:
"cinge os lombos" (Jr 1.17), que pode ser traduzida como: "e
você, prepare-se!" A frase é um termo militar hebraico usado para
descrever um soldado vestido e devidamente preparado para tomar sua espada.
Antes mesmo de nascer, ele foi convocado para lutar nessa batalha. Não lhe
foram concedidos alguns anos nos quais pudesse refletir e decidir em que lado
se posicionaria ou mesmo se iria lutar. Ele foi escolhido. Deus o chamou para
ser um guerreiro. Então, ele deve ser fiel ao anunciar a Palavra de Deus e não
deve temer a ninguém. Mais do que isso, o Senhor incita Jeremias a se preparar
para a batalha. Se Jeremias perder sua coragem, Deus o abandonará por sua falta
de fé: "Não te espantes diante deles, para que eu não te infunda espanto
na sua presença". Devemos entender: há uma verdadeira batalha espiritual
sendo travada. Há maldade, crueldade e infelicidade. Há superstição e
ignorância; brutalidade e dor. Não existe zona neutra no Universo. Cada
centímetro quadrado é área de combate. Deus se levanta contra tudo isso. Ele
está salvando, resgatando, abençoando, provendo, julgando, renovando:
"Conjuro-te, perante Deus e Cristo Jesus, que há de julgar vivos e mortos,
pela sua manifestação e pelo seu reino: prega a palavra, insta, quer seja
oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e
doutrina" (2Tm 4.1-2).
Deus,
então, faz uma das promessas mais ricas que ele pode fazer aos seus servos:
"Tu, pois, cinge os lombos, dispõe-te e dize-lhes tudo quanto eu te mandar;
não te espantes diante deles, para que eu não te infunda espanto na sua
presença. Eis que hoje te ponho por cidade fortificada, por coluna de ferro e
por muros de bronze, contra todo o país, contra os reis de Judá, contra os seus
príncipes, contra os seus sacerdotes e contra o seu povo. Pelejarão contra ti,
mas não prevalecerão". Mesmo com todos contra ele, Deus estará ao seu
lado, fazendo-o invencível. A presença de Deus lhe dá a certeza de que ele será
uma fortaleza invencível, firme como uma "coluna de ferro" e
resistente aos ataques como "muros de bronze". E sua mensagem afetará
pessoas de todas as classes sociais em Judá, dos líderes políticos e sacerdotes
ao cidadão comum.
No
início do verão de 1942, uma crente luterana, Sophie Scholl, participou da
produção e distribuição de panfletos de um pequeno movimento de resistência
pacífica chamado Rosa Branca. Ela foi presa, junto com seu irmão, Hans Scholl,
e outro universitário, Christoph Probst, em 18 de fevereiro de 1943, depois que
o reitor da Universidade de Munique os surpreendeu distribuindo esses panfletos
no pátio da universidade. Em 22 de fevereiro de 1943 os três foram julgados em
menos de quatro horas, acusados de alta traição e decapitados no mesmo dia.
Suas últimas palavras foram: "Como podemos esperar que a justiça prevaleça
quando são poucos os que estão dispostos a se doarem individualmente a uma
causa justa? Um dia bonito e ensolarado, e eu tenho de partir, mas o que
importa a minha morte, se através de nós milhares de pessoas forem despertadas
e instadas à ação?" Sophie Scholl foi martirizada com 21 anos. Mesmo tão
jovem, ela se opôs ao totalitarismo nazista, por causa de sua fé, num contexto
de repressão, censura e conformismo. Isso é coragem invencível! Se você foi
chamado a anunciar a Palavra, fique firme! A promessa e a graça de Deus estão
com você! Como diz a canção do grupo Logos:
Meu servo,
não temas!
Não temas, pois eu te escolhi!
Sei que é difícil, mas confia em mim!
Confia em mim e então,
Tu verás o meu poder!
Durante
seus quarenta anos de ministério, Jeremias foi invencível. Diversas vezes
passou por intensa agonia, mas não traiu sua vocação. Ele foi desprezado e
perseguido, mas jamais deixou de anunciar a mensagem de Deus. Ele foi
tremendamente pressionado para que fizesse concessões, desistisse e se
escondesse, porém, jamais cedeu. Cada músculo do seu corpo foi exigido até o
limite da fadiga. Mas ele foi corajosamente "coluna de ferro" e
"muros de bronze". Muitos se oporiam, mas Deus prometeu estar com ele
e protegê-lo: "Eu sou contigo, diz o Senhor, para te livrar" (Jr
1.19).
Conclusão
Jeremias
foi o profeta mais rejeitado e resistido da história israelita. Ele recebeu a
ordem de não se casar ou ter filhos (Jr 16.1-4), uma experiência incomum de
celibato. Experimentou oposição, castigos e prisões (Jr 11.18-23; 12.6; 18.18;
20.7; 26.9-19; 28.5-17; 37.11-38.28). Muitas vezes é chamado de o "profeta
chorão" (Jr 9.1; 13.17; 14.17). Quando levado para o Egito, contra a sua
vontade, caiu no esquecimento – de acordo com a tradição, ele morreu naquele
país, dez anos depois, apedrejado por seus compatriotas, que ainda se recusavam
a aceitar sua mensagem. Mas não somos chamados a andar por vista, mas por fé.
Jeremias foi grandemente honrado pelos escritores do Novo Testamento. Sua profecia
é citada 40 vezes, a metade no Apocalipse (cf. 50.8; Ap 18.4; 50.32; Ap 18.8;
51.59s; Ap 18.24s). A mais longa citação do Antigo Testamento no Novo
Testamento é a passagem da "nova aliança" (Jr 31.31-34; cf. Hb
8.8-13). As denúncias de Jeremias contra o povo como incircunciso de coração e
ouvido (Jr 6.10; 9.26) foram repetidas por Estevão (At 7.51), uma pregação que
lhe custou a vida. As lições tiradas da visita à casa do oleiro (Jr 18.1-10)
foram aplicadas por Paulo ao chamado dos gentios por Deus (Rm 9.20-24). E
Jeremias, que foi considerado o mais humano dos profetas, recebeu a maior
honra, ter sido comparado ao Filho do Homem (Mt 16.14). Que obedeçamos nossa
vocação, preguemos fielmente a mensagem recebida, que finquemos os pés no chão
com coragem, para que em tudo Deus seja glorificado.
"Todavia,
o meu povo trocou a sua Glória por aquilo que é de nenhum proveito.
Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai estupefatos, diz o Senhor.
Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas
vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas" (Jr
2.11-13).
"Dai
glória ao Senhor, vosso Deus, antes que ele faça vir as trevas, e antes que
tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a
mude em sombra de morte e a reduza à escuridão" (Jr 13.16).
"Não
nos rejeites, por amor do teu nome; não cubras de opróbrio o trono da tua
glória; lembra-te e não anules a tua aliança conosco" (Jr 14.21).
"Ó
Senhor, Esperança de Israel! Todos aqueles que te deixam serão envergonhados; o
nome dos que se apartam de mim será escrito no chão; porque abandonam o Senhor,
a fonte das águas vivas. Cura-me, Senhor, e serei curado, salva-me, e serei
salvo; porque tu és o meu louvor" (Jr 17.13-14).
Bibliografia:
Issiaka
Coulibaly, "Jeremias", em Tokunboh Adeyemo (ed. geral), Comentário
bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
Karl Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
F. Cawley, "Jeremias", em F. Davidson (ed.), Novo comentário da Bíblia.
São Paulo: Vida Nova, s/d.
J. G. S. S. Thomson, "Jeremias", em J. D. Douglas (ed.), Novo
dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 794-800.
R. K. Harrison, Jeremias e lamentações; introdução e comentário. São Paulo:
Vida Nova & Mundo Cristão, 1989.
Eugene H. Peterson, Memórias de um pastor. São Paulo: Mundo Cristão, 2011.
Eugene H. Peterson, Ânimo; o antídoto bíblico contra o tédio e a mediocridade.
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
J. R.
Soza, "Jeremias", em T. Desmond Alexander & Brian S. Rosner, Novo
dicionário de teologia bíblica. São Paulo: Vida, 2009, p. 324-329.
6. Quão Firme Fundamento!
Nenhum
edifício erigido por mãos humanas pode ser e permanecer sólido e forte, a não
ser que os seus alicerces estejam bem fixos e sejam firmes. Um edifício alto
não pode ser construído sobre uma fundação tendente a fragmentar-se. Não se
deve construir um edifício sobre mero lixo ou entulho. Sem uma base sólida e
sem colunas enterradas profundamente, a estrutura superior cairá. E mais, quanto
mais alto o edifício, mais profundas as colunas devem ser. A solidez estrutural
do edifício todo repousa completamente na firmeza do alicerce.
Em
nenhum outro lugar essa verdade é mais aplicável do que na construção da
igreja, que é "uma casa espiritual" (1Pe 2.5). Jesus Cristo em pessoa
é o único Edificador da igreja, como prometeu: "Edificarei a minha igreja,
e as portas do Hades não poderão vencê-la" (Mt 16.18b). Cristo não disse
"vocês edificarão a minha igreja". Tampouco disse: "Eu
edificarei a igreja de vocês". Em vez disso, afirmou: "[Eu]
edificarei a minha igreja". Cristo, pessoalmente, está construindo a sua
igreja, e, como um sábio construtor, está estabelecendo-a sobre fundação de
sólidas pedras – o sólido fundamento da doutrina (Ef 2.20).
Amarras
Inamovíveis da Graça Soberana
A
pedra angular, a principal pedra de uma igreja construída por mãos divinas, é a
fé no senhorio de Jesus Cristo. Afinal de contas, foi essa a grande confissão
de Pedro – "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16) – que
deu azo à grande promessa de Jesus de que construiria soberanamente a sua
igreja. Há, porém, outras amarras inamovíveis da igreja, além desta de que
acabamos de falar. No processo de edificar a sua igreja, o Senhor Jesus levanta
e coloca nos respectivos lugares as fortes colunas e os fortes componentes de
tudo quanto ensinou – o completo conselho de Deus. Jesus ordenou que os seus
discípulos ensinassem "tudo o que eu lhes ordenei" (Mt 28.20, com
ênfase em tudo). As verdades que Cristo ensinou constituem a fundação sólida e
segura. E no coração mesmo do seu ensino doutrinário está um inequívoco
compromisso com a soberania da graça divina. Estas verdades centrais formam a
sólida base do firme fundamento da igreja. A igreja que é construída sobre as
doutrinas da graça, é erguida sobre a inexpugnável rocha da revelação divina.
Que firme fundamento tal igreja tem!
Mas,
triste é dizer, a igreja atual parece ter a intenção de retirar as doutrinas da
graça do seu alicerce. Em vez disso, prefere construir com madeira, palha e
restolho sobre areia movediça. Uma igreja assim pode ter uma impressionante
aparência externa, e, portanto, pode atrair muita gente. Mas, interiormente ela
não é espiritual, é instável, e, pior, em grande parte não é convertida. Tal
igreja, construída sobre um alicerce tão frágil não pode ter esperança de
subsistir nos dias de tribulação. Mas a história registra que quando uma igreja
é edificada com o ouro, a prata e as pedras preciosas de uma mensagem centrada
em Deus, ela é fortalecida e pode resistir aos mais difíceis temporais. Nem
mesmo os ventos tempestuosos da apostasia, da perseguição e das terríveis
chamas do martírio podem fazê-la cair. De fato, sempre que a igreja é edificada
sobre a sólida rocha da graça soberana de Deus, ela permanece inamovível, como
inamovível tem permanecido nas horas mais tenebrosas da história.
A Graça
Soberana: um Firme Fundamento
As
verdades da graça soberana formam o mais forte fundamento doutrinário para
qualquer igreja ou crente. As doutrinas relacionadas com a soberania de Deus na
salvação do homem lançam a mais sólida pedra angular e, assim, protegem
firmemente a vida e o ministério do povo de Deus. O culto na igreja é mais puro
quando o ensino dessa igreja sobre a graça soberana é mais claro. Seu modo de viver
é mais limpo quando a sua exposição das doutrinas da graça é mais rica. Sua
comunhão é mais agradável quando a instrução sobre a soberania de Deus é mais
firme. Sua obra de evangelização no mundo é mais forte quando a sua proclamação
da teologia transcendental é mais ousada. A vida espiritual da igreja toda é
elevada quando a sua mensagem está ancorada no mais alto conceito sobre a graça
soberana de Deus. Foi nos tempos da história em que as doutrinas da graça eram
apresentadas em sua rica plenitude, que a igreja esteve melhor. Eis onde
permanece o firme fundamento da igreja: nas enriquecedoras verdades da graça
soberana.
A
respeito desse sólido fundamento, Benjamin B. Warfield escreveu:
Pois
bem, estes Cinco Pontos compõem uma unidade orgânica, um singular e uno corpo
da verdade. Eles estão baseados em duas pressuposições que a Escritura endossa
abundantemente. A primeira pressuposição é a completa impotência do homem, e a
segunda é a absoluta soberania de Deus em sua graça. Todos os demais pontos são
decorrências. O local de encontro desses dois fundamentos é o coração do
Evangelho, pois, se o homem é totalmente depravado, segue-se que é necessário
que a graça de Deus em salvá-lo seja soberana. De outro modo, o homem
inevitavelmente a recusará em sua depravação, e permanecerá não redimido. 1
Warfield
está certo em sua avaliação. A culpa humana e a graça divina se cruzam no
Evangelho, e as doutrinas da graça soberana retratam vividamente a
grandiosidade da obra de salvação planejada e operada por Deus.
Sobre
este ponto, Boice declara sucintamente: "As doutrinas da graça permanecem
ou caem juntas, e juntas apontam para uma verdade central: a salvação é toda de
graça porque é toda de Deus; e, porque é toda de Deus, é toda para a sua
glória". 2 Toda a glória seja para Deus, que supre
toda a graça.
Bibliografia:
1 - B. B. Warfield, "A Review of Studies in
Theology", em Selected Shorter Writings of Benjamin B. Warfield, II, ed.
John E. Meeter (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1973), 316.
2 - Boice e Ryken, The Doctrines of Grace: Rediscovering the Evangelical
Gospel, 32.
7. O Fundamento da Igreja
e a Fé
Em
Mateus 16 temos a narrativa de um diálogo entre Jesus e seus discípulos durante
um "retiro espiritual" que fizeram pelas "bandas de Cesaréia de
Filipe" (v. 13). Afastado das multidões, das controvérsias com os fariseus
e outros adversários, das tremendas demandas diárias que recebia de todos à
volta, o Senhor chama aqueles que estavam mais próximos à reflexão, para lhes
mostrar alguns dos fundamentos sobre os quais a "sua igreja" seria
continuada e firmada na face da terra.
Com
a excelência da pedagogia que sempre é evidente nos Evangelhos, nosso Senhor
começa a sua lição sobre os fundamentos da Igreja com uma pergunta que vai
levar a uma outra: "Quem diz o povo ser o Filho do Homem?".
Certamente, o simples invocar do nome "Filho do Homem" já faria com
que os discípulos refletissem a respeito das mais diversas conversas e
discussões acaloradas, tidas depois das leituras dos textos da Torá aos sábados
na Sinagoga. Quem é o "Filho do Homem" segundo os Salmos ou o Daniel,
ou mesmo na forma como a expressão é empregada para chamar o profeta
Ezequiel? Quem é esse a quem tanto esperamos, era a pergunta no ar?
A
resposta estava pronta, mostrando que havia algumas principais correntes de
interpretação entre os doutos, correntes essas que se espalhavam na opinião do
povo: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas... (v. 14). Mal sabia
o povo que o Filho do Homem já andava entre eles a cerca de 30 anos, e pouquíssimos
o reconheceram, dentre eles, alguns cegos, exatamente para mostrar que o real
problema da humanidade não é a cegueira física, mas a cegueira espiritual.
Continuando
com a sua sutil e certeira pedagogia, Jesus faz, então, a pergunta que
realmente interessa: "Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu
sou?" (v. 15). Observe que a associação é imediata: "o Filho do
Homem" e quem "eu sou". Aqui está a primeira lição direta:
Jesus é o Filho do Homem anunciado no Antigo Testamento.
Como
é usual, Pedro sai na frente ao dar a resposta. É peculiar de Pedro adiantar-se
em falar e agir. E a resposta de Pedro é direta: "Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo" (v. 16). A resposta é carregada de conceitos teológicos
fundamentais que são trazidos pelos textos da Lei, dos Salmos e dos Profetas.
Em resumo, Pedro faz uma associação teológica dizendo que o Filho do Homem é o
mesmo Messias, que é o Cristo e que este mesmo é o Filho do Deus vivo, e,
afinal, era este homem que estava diante dos seus próprios olhos na região de
Cesaréia de Filipe. A partir desta realidade, aprendemos alguns importantes
princípios no diálogo que se desenvolve.
Princípio
da Revelação
Na
resposta do diálogo, Jesus mostra, então, o primeiro grande fundamento sobre o
qual a sua igreja está firmada: a iluminação do Espírito Santo sobre a
Revelação, ou como chamarei aqui, o Princípio da Revelação. O Senhor
Jesus diz que não foi carne ou sangue que fizeram Pedro reconhecer esta verdade
revelada nas Escrituras e agora exposta diante de seus próprios olhos, mas o
próprio Deus. Esta é uma das fundamentais diferenças entre o cristianismo e
outras religiões. A revelação que vem da parte de Deus e que corresponde à
realidade dos fatos. Jesus é aquele que a Escritura diz que ele é. Jesus é
aquele que ele mesmo diz ser. Jesus é aquele que Deus diz ser! Temos aqui três
ideias básicas. Primeiro, que a revelação passada se cumpre em Cristo, afinal,
ele é o Messias prometido. Segundo, que a revelação presente, na encarnação do
Filho do Deus vivo, é superior. Não no sentido de que a revelação anteriormente
dada fosse imperfeita, mas agora, ela é completa e plena. Tudo o que Deus quis
revelar, mostrou-nos no seu Filho (Hb 1.3; Jo 1.18). E terceiro, aprendemos que
a iluminação individual é fundamental. O verso 17 nos ensina que Deus revelou a
Pedro esta verdade. Os escribas, fariseus e todos os estudiosos da época tinham
as mesmas fontes que Pedro tinha, mas foi Pedro quem conectou os pontos da
revelação passada com a revelação presente diante dos seus olhos. Esta mesma
verdade é viva hoje quando, pela iluminação do Espírito Santo, percebemos na
Escritura a verdade de Deus. Crer na revelação da Palavra de Deus é uma
bem-aventurança: "Bem-aventurado és, Simão Barjonas". Sobre esta
revelação é que a fé da Igreja deve ser fundamentada.
Princípio
da Edificação
A
resposta de Jesus a Pedro começou com uma troca de palavras: você disse que eu
sou o Cristo, e eu digo, Simão Barjonas (Simão filho de Jonas), que você é
pedra (o significado do apelido de Simão, Pedro). Jesus usa deste trocadilho
para trazer à luz uma das mais importantes verdades a respeito da fé da Igreja:
"Sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (v. 18).
O
catolicismo romano imediatamente interpretou o jogo de palavras, Pedro e pedra,
como sendo a mesma palavra e nisto construiu a doutrina do papado, sendo Pedro
o primeiro desta suposta sucessão. Mas há aí uma falácia. Quando Jesus diz
"esta pedra", não refere-se a Pedro, mas à verdade pronunciada por
Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". É sobre esta verdade
que a Igreja irá subsistir, a obra do Filho de Deus. O próprio Pedro,
refletindo sobre esta verdade, fala-nos em sua primeira epístola: "Por
isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular,
eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido" (1Pe 2.6).
A
grande lição aprendida aqui é que a Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada
sobre fundamentos humanos. Sempre que interferimos e nos colocamos no lugar do
fundamento verdadeiro encontramos diante de nós uma igreja falsificada,
trasvestida e irreconhecível como igreja de Cristo.
Princípio
da Propriedade
Da
mesma forma como a igreja não pode ter fundamentos lançados por homens, ela não
pode ter homens como seus proprietários! No final do verso 18, o Senhor Jesus
usa a expressão "minha igreja". A igreja é dele, sua noiva, pela qual
ele tem verdadeiro zelo e compromisso. Com base nesta verdade é que são feitas
muitas promessas à Igreja e a respeito da Igreja, dentre elas, a de que vai ele
apresentá-la sem mancha, ruga ou mácula.
O
Senhor sabe que é necessário cumprir toda a sua obra pela Igreja, para que
possa resgatá-la de forma completa. Por isto mostra aos seus discípulos:
"Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos,
dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro
dia" (v. 21). Ele diz "minha igreja" porque ele é o único
dono dela, trabalhou até a morte para que pudesse comprá-la com seu sangue e
ninguém mais pudesse clamar posse sobre ela e seus membros. A Igreja de Jesus
não existiria como tal sem a sua morte e ressurreição, o que lhe dá completa
posse dela.
Princípio
da Autoridade
Por
último, podemos perceber o princípio da autoridade de Cristo sobre a sua
Igreja. Para demonstrar este princípio temos, em primeiro lugar, a afirmação
desta autoridade: "E as portas do inferno não prevalecerão contra
ela" (v.18b). O conceito é, de certa forma, muito simples: o fato da
Igreja ter a autoridade da revelação de Deus, ser a propriedade e a edificação
de Cristo, não há nada neste mundo, nem o próprio inferno, que possa se colocar
contra ela e vencer. Assim, a verdadeira Igreja de Cristo não tem o que temer;
não há poderes que possam terminá-la, porque ela pertence a Cristo. Aliás,
opor-se à obra de Cristo na Igreja é obra de Satanás e é por isto que Pedro é
repreendido severamente ao opor-se, quando foi dito que era necessária a morte
e ressureição do Senhor.
Por
outro lado, a verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra.
O Senhor afirma: "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na
terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido
desligado nos céus" (v.19). Veja que o texto é muito claro em dizer que a
ordem da ação de ligar e desligar começa no céu e é implementada na terra pela
Igreja. Acredito que aqui temos o ensino claro, somado ao contexto de Mateus
18.15-18, onde aparece a mesma expressão, que a Igreja tem a obrigação de
admitir e demitir aqueles que não cogitam das coisas de Deus. A Igreja tem a
responsabilidade de abrir e fechar a porta para que as "portas do inferno"
não operem dentro dela mesma. Logo, a Igreja na terra deve viver na busca de
realizar a vontade soberana do Pai do céu.
E
como, afinal, esta fé deve ser vivida aqui na terra?
"Então,
disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida
perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á. Pois que
aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará
o homem em troca da sua alma? Porque o Filho do Homem há de vir na glória
de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas
obras. Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que
de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no
seu reino" (16.24-28).
O
que o texto nos mostra é que a vida de fé na igreja deve ser vivida em torno da
cruz! É, com certeza, uma vida de negação dos padrões da individualidade
egoísta para viver os padrões da vida do bem-aventurado. Da mesma forma como
era necessário que o Senhor fosse a Jerusalém para passar pela cruz, o cristão
toma a sua cruz e segue a Jesus nos passos da ressurreição.
8. Missões e Sofrimento
Introdução
Somos
de uma cultura de direitos. Os ocidentais, em geral, e os americanos, em
específico, são criados para acreditar que seus direitos são invioláveis e que
a vida lhes deve algo. Os nossos direitos perceptíveis vão muito além dos
direitos básicos de liberdade de religião, de expressão e de reunião. Afinal de
contas, a Declaração de Independência Americana diz que todos têm o direito
inalienável de buscar a felicidade; e isso é facilmente traduzido, na mente das
pessoas, como direito à própria felicidade. Na cultura ocidental, confronto,
conveniência e segurança se tornaram a experiência de vida normal para a vasta
maioria das pessoas. Em tal ambiente, não é surpresa que estas coisas tenham
chegado a ser consideradas como direitos inegociáveis. Além disso, numa cultura
materialista adversa ao conceito de transcendência, valores como conforto,
conveniência e segurança parecem ser cruciais para a maioria das pessoas. Esses
valores sobrepujam tudo mais. Qualquer coisa que ameaça ou perturba a experiência
destas coisas é vista automaticamente como má.
Essa
maneira de pensar penetrou na igreja cristã. Os evangélicos ocidentais cantam
sobre amar a Jesus mais do que sobre qualquer outro assunto ou outra coisa.
Todavia, o compromisso deles permanece frequentemente dentro do contexto de
expectativas determinadas culturalmente. Como ocidentais, eles consideram
inconscientemente, como muitos outros, segurança e conforto como seus valores
mais importantes; por isso, eles constroem seu entendimento da vida de discipulado
dentro desses parâmetros. A supremacia destes interesses parece tão
autoevidente que nem mesmo ocorre a alguém examiná-los. Os evangélicos
ocidentais simplesmente não pensam na possibilidade de que Deus exija deles
algo que seja desconfortável ou inseguro, além do, talvez, desconforto brando
de compartilharem o evangelho com alguém que se ofende no decorrer do processo.
Quando
um evangelho centrado no homem é pregado, esta tendência se torna ainda mais
visível. Quando pessoas ouvem que o alvo da salvação é satisfazer suas
necessidades ou seus desejos por realização (ou mesmo dar-lhes uma "vida
abundante" mal definida como "sua melhor vida agora"), não faz
sentido alguém pensar que seguir a Jesus pode envolver sofrimento e perda. No
entanto, mesmo em igrejas que mantêm um teocentrismo bíblico, esta aversão
inconsciente ainda se mantém real. O sofrimento como uma parte normal da vida e
um componente normal de seguir a Cristo não integra a agenda mental da maioria
dos cristãos ocidentais. Quando os crentes seguem um caminho de obediência que
envolve desconforto, eles são considerados heróis da fé incomuns. Quando esse
caminho de obediência os coloca em um risco físico sério, são frequentemente
tachados de fanáticos e considerados como potencialmente confusos. Mesmo no
avanço da Grande Comissão, muitas igrejas e cristãos do Ocidente valorizam
inconscientemente o dinheiro mais do que a obediência e supõem que Deus nunca
pediria aos seus que arrisquem sua vida por amor à sua obra. Sofrer é visto
como anormal, incomum e mau.
Nisto,
assim como em muitas coisas, a experiência cultural do Ocidente está em
desarmonia com a maior parte do mundo no decorrer da maior parte da História. A
maior parte da raça humana não tem tido outra escolha, senão a de suportar
sofrimento como uma ocorrência comum da vida. Sem os grandes escudos protetores
que o Ocidente desfruta (tecnologia, medicina, sistemas de distribuição global
de alimentos, paz interna e o governo da lei), a maior parte da raça humana tem
vivido com a ameaça de doenças, fome, desastres naturais e violência humana,
como uma condição normal. Até no Ocidente, embora o sofrimento seja restringido
e ocultado, ele não pode ser eliminado verdadeiramente. Crimes ainda acontecem.
Desastres naturais destroem comunidades inteiras, e crises econômicas aniquilam
anos de economias numa noite. Podemos ter os melhores cuidados médicos do
mundo, mas as pessoas ainda ficam doentes, e todos, por fim, morrem - às vezes,
de maneira lenta e dolorosa. A diferença é que as pessoas do Ocidente se
ofendem com o sofrimento, como se seus direitos fossem de algum modo violados
por sua mera existência. O resto do mundo sabe que sofrer é apenas uma parte da
vida.
É
muito estranho que os cristãos ocidentais tenham essa visão reduzida do
sofrimento. O sofrimento é um dos grandes temas da Bíblia. O fato de que os
cristãos ocidentais não observam isso (ou supõem inconscientemente que o
sofrimento não se aplica a eles) é um exemplo clássico de suposições culturais
que afetam a interpretação da Escritura. Quer o observem, quer não, a Bíblia
fala muito sobre sofrimento. Prestar atenção especial a coisas que aparecem
proeminentemente na Palavra de Deus é um princípio correto de interpretação da
Escritura. O evangelicalismo ocidental precisa desesperadamente recapturar uma
teologia bíblica do sofrimento. Sem ela, faremos de nosso conforto e segurança
um ídolo e marginalizaremos a nós mesmos no serviço da Grande Comissão.
A
Bíblia fala sobre o sofrimento em várias categorias. O sofrimento existe em
todos os lugares e sobrevém a todas as pessoas apenas porque este mundo é um
mundo caído. Às vezes, o sofrimento acontece como consequência de mau
comportamento, embora a Bíblia nos alerte contra o fazermos julgamento imediato
nesses casos. O sofrimento é prometido especialmente àqueles que seguem a Jesus
em um mundo que está em rebelião contra ele. E, de maneira mais intensa, o
sofrimento está ligado à obra do avanço do evangelho. Em vez de considerar o
sofrimento como totalmente mau, a Bíblia destaca benefícios e bênçãos que fluem
do sofrimento. Por fim, a Bíblia dá instrução clara sobre como os crentes devem
reagir quando o sofrimento lhes sobrevêm na sábia providência de Deus.
Sofrendo
em um mundo caído
Vivemos
num mundo bagunçado. A causa desta bagunça é a nossa rebelião contra Deus.
Quando ele criou o mundo, ele viu que tudo era bom, e tudo permaneceu bom até
que a raça humana parou de confiar em Deus e lhe desobedeceu. A queda de Adão e
Eva no pecado introduziu alguma forma de sofrimento em cada área da vida. Imediatamente,
o relacionamento conjugal deles foi corrompido, Adão procurou culpar Eva por
seu próprio pecado, e o filho mais velho deles assassinou seu irmão mais novo.
A primeira família foi também a primeira família disfuncional! Os poucos
capítulos seguintes de Gênesis mostram a espiral descendente e rápida da
depravação humana, chegando até ao ponto em que Gênesis 6.5 nos dá esta triste
acusação: "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na
terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração". Como
resultado da rebelião do homem, os relacionamentos dos seres humanos estão
confusos. E os resultados incluem tudo, desde amizades destruídas e casamentos
rompidos a assassinato e opressão. Toda pessoa que vive neste mundo caído está
sujeita ao sofrimento apenas por causa da propensão inata das pessoas para
ferirem umas às outras.
A
queda afetou muito mais do que apenas os relacionamentos humanos. Ela corrompeu
toda a ordem criada. Em Gênesis 3, Deus disse a Eva que sua dor no parto
aumentaria grandemente e disse a Adão que sua sobrevivência dependeria de labor
doloroso. Em Romanos 8, Paulo explicou que toda a criação está "sujeita à
vaidade", em "cativeiro da corrupção" e, "a um só tempo,
geme e suporta angústias até agora" (Rm 8.18-22). Como resultado de nossa
rebelião, este mundo se tornou um lugar de desastres naturais, e nossa vida é
caracterizada por doença e morte. Terremotos, furacões, tornados, secas,
inundações, fomes, deslizamentos de terra, câncer, doenças de coração e coisas
semelhantes, tudo resulta do fato de que este é um mundo caído. Essas coisas
atingem tanto o povo de Deus como aqueles que desafiam a Deus. Em sua Palavra,
Deus nunca promete que seu povo será isento de qualquer destas características
dolorosas de um mundo caído. Neste mundo bagunçado pelo pecado humano, coisas
más acontecem a todas as pessoas.
Devido
à gravidade do pecado, é admirável que as coisas não sejam piores. Nas
operações da graça comum, Deus ainda provê bênçãos para os justos e, também,
para os injustos. E o Espírito de Deus restringe o mal, para que as coisas não
sejam tão más como poderiam ser. Em seu cuidado providencial, Deus protege,
muitas vezes, o seu povo de desastres que poderiam ter acontecido. Todo crente
tem um testemunho de maneiras pelas quais Deus o protegeu de dano potencial, e,
muito provavelmente, no céu descobriremos inúmeras outras ocasiões em que Deus
nos protegeu, quando nem mesmo percebemos. No entanto, ele nunca promete que
sempre nos protegerá e não está sob qualquer obrigação de fazer isso. O
sofrimento acontece apenas porque este é um mundo caído. Algumas pessoas
experimentam menos sofrimento por causa do lugar em que vivem, e parte desta
diferença pode ser atribuível ao impacto da Palavra de Deus na cultura, através
do tempo. Todavia, cada pessoa está sujeita à possibilidade de desastres
naturais ou crimes. Cada pessoa pode ter câncer ou doença de coração; por fim,
cada pessoa morre. Estas formas de sofrimento vêm apenas porque o mundo é
caído, e os sofrimentos não discriminam entre crentes e não crentes.
Sofrimento
por fazermos o mal
O
sofrimento vem, às vezes, como resultado de fazermos o mal. Algumas coisas são
apenas as consequências naturais de desconsiderarmos as orientações dadas por
Deus. Alcoolismo, abuso de drogas e glutonaria causam seu próprio dano natural
na raça humana. Quando alguém comete um crime e é apanhado, sua punição
subsequente vem como uma consequência legal do procedimento errado. Também é
verdade que em certas passagens da Escritura (como as maldições pronunciadas em
Deuteronômio 28), sofrimento e desastre são ligados diretamente, por Deus, à
desobediência aos seus mandamentos. No entanto, a Escritura nos adverte contra
estabelecermos muito rapidamente uma conexão entre o pecado de uma pessoa e o seu
sofrimento. O livro de Jó, em específico, anula esta conexão. Os amigos de Jó
estavam convencidos de que as tribulações de Jó eram, de algum modo, resultado
de algum pecado que ele cometera. Jó protestou em sentido contrário, e, no
final, Deus afirmou que Jó, e não os seus amigos, falara corretamente sobre
este assunto. Jesus rejeitou a noção de que um homem nascido cego estava sendo
punido por algum pecado dele mesmo ou de seus pais (Jo 9.1-3). E, quando lhe
perguntaram sobre dois grupos de pessoas que haviam morrido - um grupo, por
causa de opressão política, e outro, por causa da uma torre que caíra sobre
eles -, Jesus insistiu em que eles não eram pecadores piores do que os outros
que haviam escapado desses infortúnios. A coisa mais segura que podemos dizer é
que fazer o mal não tem frequentemente as suas próprias consequências naturais,
e Deus pode usar o sofrimento como uma chamada de despertamento para pessoas
que estão seguindo o caminho errado; mas devemos dizer que raramente é sábio
supor que, se uma pessoa está sofrendo, ela está sofrendo por causa de algum
pecado específico que cometeu.
Sofrendo
como cristão
Neste
assunto, o pensamento da Escritura é diretamente contrário às expectativas
culturais do evangelicalismo ocidental irrefletido. O Novo Testamento tanto
pressupõe como afirma que o sofrimento é normal, é uma parte expectável do que
significa seguir a Cristo. Em face do que a Bíblia diz sobre a condição caída
do mundo, isto não deve ser uma surpresa para o crente. Em Jesus, Deus se tornou
homem e viveu entre nós, e o mundo reagiu assassinando-o. Em vez de buscar a
Deus, a humanidade caída o odeia e está tentando escapar dele. Se uma pessoa
fala a pecadores rebeldes sobre o Deus verdadeiro ou expõe a autojustiça deles
como a fraude que ela é, tal pessoa incorre no mesmo ódio que caiu sobre Jesus.
Ele deixou clara a conexão: "Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não
é o servo maior do que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão
a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa" (Jo
15.20). Eles perseguiram a Jesus, logo, a conclusão deve ser óbvia. Em um mundo
corrompido pelo pecado, é realmente verdadeiro que nenhuma obra boa fique sem
punição. Paulo expressou isso quando disse: "Ora, todos quantos querem
viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos" (2 Tm 3.12). Sob a
inspiração do Espírito Santo, Paulo não disse "talvez sejam", ele
disse: "Serão". Sofrer por amor a Cristo é entendido como uma dádiva:
"Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente
de crerdes nele" (Fp 1.29). A palavra traduzida aqui por "foi
concedida" vem da família da palavra charis, no grego, e poderia ser
traduzida por "foi presenteada". A Bíblia nos diz que os apóstolos se
regozijaram por terem sido considerados dignos de sofrer por causa do nome de
Jesus (At 5.40-41). As igrejas em Jerusalém (At 8.1), na Galácia (Gl 3.4), em
Filipos (Fp 1.29), em Tessalônica (1 Ts 2.14) e na Ásia Menor (1 Pe 4.12),
todas experimentaram sofrimento, tal como os recipientes originais da Epístola
aos Hebreus (Hb 10.32). Paulo atravessou sofrimento horrível (2 Co 11.23-29),
como também os outros apóstolos (At 5-8). Na Escritura cristã, a chamada para
seguir a Cristo é uma chamada para abandonar a tranquilidade, a segurança e o
conforto deste mundo, a fim de tomar a cruz. Isto não é uma descrição de uma
superfé extraordinária. É uma descrição bíblica da vida normal do cristão
normal. 1
A
comunhão no sofrimento de Cristo
No
Novo Testamento, muitas das referências que falam sobre sofrimento dizem
respeito especialmente ao sofrimento de Jesus. Há um forte sentido em que estes
sofrimentos são exclusivos de Jesus. Somente ele poderia sofrer ou morrer pelos
pecados do mundo. Somente ele, Deus perfeito e homem perfeito, poderia sofrer
em nosso lugar para pagar a penalidade que merecíamos pagar. Nesse sentido,
Jesus sofreu para que os crentes não tivessem de passar por esse sofrimento.
Porque ele suportou a ira de Deus contra a nossa rebelião, aqueles que creem
nele nunca terão de enfrentar essa ira. Nenhum crente jamais sofreu para
compensar qualquer de seus erros aos olhos de Deus. A morte expiatória de Jesus
é totalmente suficiente para pagar todos os pecados de todas as pessoas que
crerão nele, em todos os lugares, em todo o tempo. Nada pode ser acrescentado a
essa morte.
No
entanto, a Escritura nos diz que aqueles que creem em Cristo estão agora, eles
mesmos, "em Cristo". Por meio da habitação do Espírito, os crentes
possuem agora uma união íntima com Jesus. Muitas bênçãos maravilhosas fluem
para o povo de Deus por meio desta união com o seu Salvador. Esta mesma união
os une também com o contínuo sofrimento dele no mundo, não como obra de
expiação, e sim como a experiência de oposição do mundo ao amor e à santidade
dele. Parte do que significa estar "em Cristo" é compartilhar da
comunhão de seus sofrimentos. Paulo une o conhecer a Cristo e o poder de sua
ressurreição com o compartilhar de seus sofrimentos, como se estas duas coisas
fossem inseparáveis (Fp 3.10). Paulo disse aos cristãos de Corinto:
"Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande
medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio de
Cristo" (2 Co 1.5). Pedro ecoou este mesmo tema, ao dizer:
"Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de
Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis
exultando" (1 Pe 4.13). Em Romanos 8.17, Paulo chegou ao ponto de dizer
que os crentes são "herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele
sofremos, também com ele seremos glorificados". Sofrer com Cristo é tão
intimamente conectado com o gozo final de sua glória, que as duas coisas não
podem ser separadas. A menos que Paulo tenha negado o que dissera em outra
passagem, isto não pode significar que estes sofrimentos são, de algum modo,
salvadores. Mas isto parece demonstrar que sofrer com Cristo é uma parte tão
normal de estar em Cristo, que Paulo não podia conceber uma coisa sem a outra.
Em
Colossenses 1.24, Paulo disse: "Agora, me regozijo nos meus sofrimentos
por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor
do seu corpo, que é a igreja". É impressionante ouvirmos Paulo falar sobre
algo que faltava nas aflições de Cristo, até que compreendemos que a palavra
que ele usou nesta passagem nunca é usada a respeito do sofrimento expiatório
de Jesus. Paulo não disse que estava contribuindo para a obra salvadora de
Cristo em morrer por nossos pecados. Antes, esta aflição de Cristo é sua
experiência, em união com seu corpo na terra, da aflição deles como seu povo em
um mundo hostil. Aparentemente, há uma plena medida dessa aflição que será
experimentada pelo povo de Deus antes do fim desta era; e Paulo viu seu próprio
sofrimento como algo que contribuía para essa medida. A intimidade da união de
Cristo com seu povo é tão profunda, que os sofrimentos deles são de Cristo, e
os sofrimentos de Cristo são deles.
Isto
significa que cristãos confortáveis e prósperos do Ocidente devem sair por aí e
tentar provocar perseguição ou afligir intencionalmente a si mesmos com
práticas ascéticas? Não. O ascetismo é inútil como um instrumento de
santificação (Cl 2.23), e os crentes não são ordenados a buscarem perseguição.
No entanto, a condição deles deve alarmá-los. É perigosa e anormal. Eles
precisam especialmente acautelar-se das seduções da respeitabilidade e da
prosperidade. Precisam acautelar-se da idolatria sutil de fazerem de Jesus um
meio para obterem seu próprio gozo desta vida. Precisam acautelar-se do
mundanismo de colocarem seu coração nas coisas deste mundo e valorizarem
possessões, saúde e segurança mais do que a glória de Cristo. Precisam examinar
a si mesmos com honestidade e verificar constantemente se o desejo de manterem
seu estilo de vida os seduziu a comprometer de alguma maneira a sua obediência.
Precisam cultivar a mentalidade de prontidão para perder qualquer coisa e tudo,
quase imediatamente, por causa do supremo valor de Cristo. Riqueza e segurança
são condições perigosas nas quais um discípulo de Jesus e aqueles que vivem
nelas precisam exercer cuidado especial. A condição normal de um seguidor de
Cristo é participar da comunhão dos sofrimentos dele, e os que não fazem isso
precisam sempre perguntar a si mesmos por que não o estão fazendo.
Sofrimento
e o avanço do evangelho
Promover
o avanço do evangelho é um empreendimento perigoso. Aqueles que levam a luz de
Cristo às trevas de um mundo rebelde parecem experimentar um nível
intensificado de sofrimento. Isto foi certamente uma experiência de Paulo. Bem
no começo da vida cristã de Paulo, quando Ananias lhe foi enviado em Damasco
para restaurar-lhe a visão, Deus ligou uma descrição de sua chamada missionária
com estas palavras: "Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu
nome" (At 9.16). Paulo entendeu esta ligação e a expressou a Timóteo no
final de sua vida, ao descrever o evangelho e dizer sobre ele: "Para o
qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre e, por isso, estou sofrendo
estas coisas" (2 Tm 1.11-12). Para que ninguém pense que esta conexão
entre sofrimento e serviço do evangelho era exclusiva dos apóstolos, Paulo
aplicou-a também a Timóteo, dizendo: "Participa dos meus sofrimentos como
bom soldado de Cristo Jesus" (2 Tm 2.3). Na verdade, esta conexão era tão
íntima, que Paulo usou a expressão "participa comigo dos sofrimentos, a
favor do evangelho", onde o contexto indica claramente que ele falava
sobre participar da obra do evangelho (2 Tm 1.6-9).
Este
padrão tem permanecido até ao presente. Aqueles que têm levado o evangelho a
lugares onde ele nunca foi ouvido antes têm sido, sempre, alvos especiais de
oposição e sofrimento. David Garrison, em seu livro Church Planting Movements
(Movimentos de Plantação de Igreja), lista o sofrimento de missionários como
uma das principais características na maioria dos lugares em que Deus tem agido
de maneiras extraordinárias. 2 Isto não deve
surpreender-nos. O mundo, o Diabo e a nossa própria carne se opõem, todos, à
obra de Deus. Aqueles que levam o evangelho a lugares em que Cristo ainda não é
conhecido têm de fazer isso com seus olhos abertos para o que possa vir
adiante. Além disso, a igreja no Ocidente tem de abraçar a verdade de que o
evangelho é digno de qualquer preço que Deus pede que paguemos e tem de abandonar
sua aversão instintiva ao desconforto e ao perigo. A Grande Comissão não será
cumprida sem sofrimento. 3 Se uma parte do corpo de Cristo
demonstra que não está disposta a pagar qualquer tipo de preço, Deus os deixará
de lado e usará aqueles cujos valores estão mais em harmonia com os valores
dele.
Cosmovisão
Bíblica e Sofrimento
Até
aqui esta discussão têm sido um tanto sombria. Tudo isto significa que o
cristianismo bíblico é algum tipo de ascetismo melancólico? De modo nenhum!
Como disse C. S. Lewis, Deus é um hedonista no coração. 4 Há
prazeres eternos à sua mão direita (Sl 16.11). A vida cristã é uma questão de
"alegria indizível e cheia de glória" (1 Pe 1.8). Mesmo quando fala
sobre os sofrimentos de Jesus, a Bíblia nos diz que ele suportou a cruz "em
troca da alegria que lhe estava proposta" (Hb 12.2). O cristianismo
bíblico não valoriza o sofrimento por si mesmo. A atitude cristã para com o
sofrimento é uma questão de sistema de valores transformado. Por causa do
verdadeiro tesouro, o crente está disposto a renunciar as coisas menores, como
possessões, conforto temporal e segurança ou até a esta vida. A realidade não é
o que você perde. A realidade é o sobrepujante valor do que você ganha.
Paulo
resumiu sua perspectiva em sua carta aos cristãos de Filipos. No contexto em
que Paulo falou sobre a possibilidade de ser executado por causa de sua fé, ele
disse: "Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro" (Fp 1.21).
Seu maior tesouro nesta vida era conhecer Cristo. O benefício ganho na morte
era o estar com Cristo, o que Paulo considerou melhor do que qualquer coisa que
esta vida poderia oferecer (Fp 1.23). Em qualquer circunstância, Cristo é tudo.
Ele é o tesouro escondido no campo que é digno de vendermos tudo para obtê-lo
(Mt 13.44). Ele mesmo é a coisa mais preciosa que já existiu nesta terra. É a
verdadeira vida, a verdadeira alegria, a verdadeira paz, a verdadeira
satisfação. Em Cristo, o crente tem perdão do pecado, novo nascimento,
reconciliação com Deus, adoção na família de Deus, o dom do Espírito Santo,
transformação progressiva na imagem de Cristo e a garantia da vida eterna na
alegria e glória infinitas da presença de Deus. Este é o verdadeiro
tesouro, é um tesouro que não pode ser perdido. Todas as coisas que o mundo
valoriza - possessões, conforto, saúde e a própria vida - são coisas que todos,
por fim, perderão. Que pessoa racional se apega, enquanto pode, a coisas que
por fim perderá, às expensas de coisas de muito maior valor que ela nunca
perderá? Vista da perspectiva de Deus, a pessoa verdadeiramente sensata é
aquela que suporta quaisquer perdas temporais que acompanham o tesouro genuíno
e eterno. Quando os crentes assimilam o incrível valor de Cristo e de seu
evangelho e o valor comparativamente menor e passageiro das coisas boas desta
vida, podem ver com os mesmos olhos de Paulo, o qual, depois de tudo por que
passou, escreveu: "A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós
eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas
que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as
que se não veem são eternas" (2 Co 4.17-18).
Evidentemente,
o problema é que as coisas que podemos ver são imediatas e sedutoras, enquanto
as que não podemos ver só podem ser assimiladas pela fé. Aqueles que têm muitas
coisas boas que podem ver aqui têm frequentemente mais dificuldade para
assimilar o valor superior das coisas que não podem ver. A maioria das pessoas
prefere ter seu bolo e, também, comê-lo. Preferem gozar as coisas boas desta
vida e as coisas melhores da vida por vir. Contudo, em sua sabedoria, Deus sabe
que não podemos servir a dois senhores (Mt 6.24). Ele não chama seus filhos a
renunciarem todas as possessões e prazeres, assim como não nos ordena buscar o
sofrimento por si mesmo. Tudo que ele criou é bom, incluindo possessões e
prazeres usados corretamente. Deus chama os seus filhos a valorizarem aquilo
que é infinita e eternamente valioso, acima daquilo que é menos importante e
temporal. Deus os chama a investir sua vida nas coisas da vida por vir. Ele os
chama a reconhecer que não pertencem a si mesmos, mas vivem somente pela graça
e para a glória dele. Quando essa perspectiva é atingida, a chamada para
suportar sofrimento por causa do evangelho deixa de ser notícias sombrias e se
torna uma parte razoável de nossa chamada jubilosa em Cristo.
Os
cristãos que têm assimilado a mentalidade da cosmovisão bíblica aceitam o
sofrer por Cristo porque ele é intrinsecamente digno disso. Eles acharam em
Cristo o maior tesouro do mundo, e em comparação com ele todas as atrações e
confortos do mundo parecem esterco coberto de ouropel. Como Paulo, eles podem
dizer com honestidade: "Sim, deveras considero tudo como perda, por causa
da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual
perdi todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo"
(Fp 3.8). As coisas deste mundo não são dignas de nosso sofrimento, mas Jesus
é.
Benefícios
do sofrimento
Vale
a pena sofrer por Jesus porque ele é muito maior do que qualquer coisa que
percamos em segui-lo. Além disso, há certos benefícios que vêm ao crente por
meio do sofrimento. Um desses benefícios é que o sofrimento testa e demonstra
se a fé é genuína ou não. Em sua parábola dos quatro solos, Jesus falou sobre
aqueles que fazem uma aceitação superficial do evangelho, mas não aprofundam
suas raízes. Quando a perseguição ou as dificuldades vêm, eles voltam atrás
rapidamente, mostrando que sua fé nunca fora genuína (Mt 13.20-21). Por outro
lado, falando aos crentes que haviam suportado sofrimento, Pedro disse:
"Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário,
sejais contristados por várias provações, para que, uma vez confirmado o valor
da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo,
redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo" (1 Pe
1.6-7).
Outro
benefício do sofrimento é que ele é um aliado na luta contra o pecado. Em sua
primeira carta, Pedro também escreveu: "Ora, tendo Cristo sofrido na
carne, armai-vos também vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na
carne deixou o pecado" (1 Pe 4.1). O sofrimento não deve ser buscado, como
o faziam os ascetas medievais, na esperança de que a autopunição intencional
possa purificar o pecado. Entretanto, quando o sofrimento vem, ele é usado
frequentemente por Deus para tornar Cristo mais atraente e tornar o mundo menos
atraente e, assim, ajudar-nos na luta por santidade.
O
sofrimento ajuda a moldar o caráter do crente na imagem de Jesus. Em uma
passagem famosa, Paulo escreveu: "E não somente isto, mas também nos
gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz
perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança"
(Rm 5.3-4). Assim como o treinamento rigoroso molda o corpo de um atleta e o
torna preparado para o esporte, assim também o sofrimento molda o caráter de um
cristão e o torna preparado para o serviço do reino.
Por
último, o sofrimento provê uma oportunidade para o crente experimentar o poder
de Deus. Paulo mostrou ter compreendido isso, quando disse: "Pelo que
sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições,
nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou
forte" (2 Co 12.10). A força de Deus é supremamente maior do que a nossa,
porém experimentaremos mais provavelmente essa força quando chegarmos ao fim de
nossos próprios recursos e descansarmos somente nele.
Reagindo
ao sofrimento
Como
um cristão deve reagir quando o sofrimento lhe sobrevém? Primeiramente, não
devemos ficar surpresos. "Amados, não estranheis o fogo ardente que surge
no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária vos
estivesse acontecendo" (1 Pe 4.12). A cultura ocidental pode instilar a
expectativa de que a vida deve ser fácil, mas a Bíblia indica claramente o
contrário, especialmente para os cristãos. Não devemos ser surpreendidos nem
confundidos pelo sofrimento. Deus nos instruiu que devemos esperá-lo.
Em
segundo, devemos suportar pacientemente qualquer sofrimento que nos sobrevenha,
sem comprometermos nossa integridade em Cristo. O Novo Testamento ressoa este
tema repetidas vezes. Eis dois exemplos. Paulo disse a Timóteo: "Tu,
porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um
evangelista, cumpre cabalmente o teu ministério" (2 Tm 4.5). Pedro
afirmou: "Porque isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo
injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus" (1 Pe 2.19). A
nossa tentação carnal é fazer quaisquer comprometimentos que forem necessários
para banir nosso sofrimento. Deus nos chama a suportar com paciência.
Em
terceiro, devemos amar aqueles que nos perseguem e orar por seu bem-estar (Mt
5.43-47). Não devemos tomar vingança daqueles que erram contra nós (Rm 12.14,
17, 19-21). Tanto a nossa carne quanto o mundo ao nosso redor nos instigam a
que vindiquemos a nós mesmos, mas devemos reagir aos instrumentos humanos de
nosso sofrimento como Jesus reagiu, amando até as pessoas que o mataram.
Em
quarto, devemos crer em Deus em meio ao nosso sofrimento e reagir por fazermos
o bem proativamente. "Os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem a
sua alma ao fiel Criador, na prática do bem" (1 Pe 4.19). A consequência
de nosso sofrimento está nas mãos de Deus, e podemos confiar nele quanto a essa
consequência. Deus pode nos libertar por levar-nos ao lar para ficarmos com
ele, mas ele nunca nos deixará, nem nos abandonará. Nada pode tirar-nos de suas
mãos ou separar-nos de seu amor. Nosso dever é pagar o mal com o bem. Devemos
deixar as consequências com Deus e ser proativos em fazer a obra de seu reino
em face de qualquer coisa que nos sobrevenha. Precisamos guardar-nos da
tentação real de entrarmos no modo de sobrevivência e, em vez disso,
permanecermos ativos na propagação de sua glória.
Devemos
usar nossas experiências de sofrimento para confortar os outros que sofrem.
Paulo abordou isto com alguma amplitude em 2 Coríntios 1. Em vez de tornar-nos
apáticos ou insensíveis, o sofrimento deve nos tornar compassivos para com os
outros em suas aflições.
Devemos
fixar nossos olhos em Jesus (Hb 12.1-3). Esta talvez seja a reação mais
essencial de todas. Nossa carne sempre recuará do sofrimento. O mundo sempre
nos dirá que somos loucos por nos colocarmos no sofrimento, em primeiro lugar.
Somente por mantermos uma perspectiva bíblica sobre o supremo valor de Jesus,
seremos capazes de suportar com paciência o sofrimento, enquanto abençoamos
nossos perseguidores, confortamos outros que sofrem e continuamos ativamente na
obra do reino de Deus. Isto exige dedicação em oração e no estudo da Palavra de
Deus. Também exige encorajar e desafiar outros no corpo de Cristo, a menos que
estejamos involuntariamente separados dos outros crentes. Somente em Cristo o
sofrimento pode não somente ser suportado, mas também transformado em algo que
glorifica a Deus e nos faz bem.
Por
fim, somos até ordenados a regozijar-nos. Pedro disse: "Alegrai-vos na
medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo" (1 Pe 4.13).
Isto parece insensato para o mundo, mas foi a reação espontânea dos apóstolos,
que se regozijaram por haverem sido considerados dignos de sofrer por causa de
Cristo (At 5.41). Regozijo como este só pode surgir pelo poder do Espírito
Santo, em mentes que compreenderam plenamente o valor supremo de Cristo, em
vidas que têm seus olhos fixados habitualmente em Cristo. Somente nele, faz
sentido regozijar-nos em meio ao sofrimento.
Conclusão
Um
artigo como este é difícil de ser escrito. Se eu dei a impressão de que já fiz
tudo que recomendei aos outros neste artigo, esta é realmente uma impressão
errada. Comparado com meus irmãos e irmãs na igreja perseguida, eu não sofri
ainda. Ainda acho intimidante a perspectiva do sofrimento e da perseguição. No
entanto, com base na leitura da Palavra de Deus e com base em conversas com
outros irmãos que suportaram muito mais por causa do reino de Deus, aprendi uma
coisa. Deus nos dá graça quando ela é necessária. "Acheguemo-nos,
portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia
e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna" (Hb 4.16). Ele não a dá
necessariamente antes do tempo. Deus não me dá graça agora para que eu precise
enfrentar algo que pode ou não acontecer-me no futuro. Todavia, no momento de
necessidade, ele é sempre fiel. Nessa confiança, precisamos repudiar os temores
de nossa carne e as mentiras do mundo e suportar o sofrimento como bons
soldados de Jesus Cristo.
Bibliografia
1 - Quanto
a uma leitura adicional sobre o sofrimento à luz do reino de Deus, ver John
Piper e Justin Taylor, eds., Suffering and the Sovereignty of God (Wheaton:
Crossway, 2006).
2 - David Garrison, Church Planting Movements (Midlothian, VA: WIGTake
Resources, 2004), 235-38.
3 - Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento e o avanço do evangelho,
ver John Piper, Let the Nations Be Glad: The Supremacy of God in Missions, 3rd
ed. (Grand Rapids: Baker, 2010), 93-131; e J. Dudley Woodberry, ed., From Seed
to Fruit (Pasadena: William Carey, 2008), especialmente o capítulo 24.
4 - C. S. Lewis, Screwtape
Letters (San Francisco: HarperCollins, 2001), 118.
9. O Fundamento da Igreja
e a Fé
Em
Mateus 16 temos a narrativa de um diálogo entre Jesus e seus discípulos durante
um "retiro espiritual" que fizeram pelas "bandas de Cesaréia de
Filipe" (v. 13). Afastado das multidões, das controvérsias com os fariseus
e outros adversários, das tremendas demandas diárias que recebia de todos à
volta, o Senhor chama aqueles que estavam mais próximos à reflexão, para lhes
mostrar alguns dos fundamentos sobre os quais a "sua igreja" seria
continuada e firmada na face da terra.
Com
a excelência da pedagogia que sempre é evidente nos Evangelhos, nosso Senhor
começa a sua lição sobre os fundamentos da Igreja com uma pergunta que vai
levar a uma outra: "Quem diz o povo ser o Filho do Homem?".
Certamente, o simples invocar do nome "Filho do Homem" já faria com
que os discípulos refletissem a respeito das mais diversas conversas e
discussões acaloradas, tidas depois das leituras dos textos da Torá aos sábados
na Sinagoga. Quem é o "Filho do Homem" segundo os Salmos ou o Daniel,
ou mesmo na forma como a expressão é empregada para chamar o profeta
Ezequiel? Quem é esse a quem tanto esperamos, era a pergunta no ar?
A
resposta estava pronta, mostrando que havia algumas principais correntes de
interpretação entre os doutos, correntes essas que se espalhavam na opinião do
povo: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas... (v. 14). Mal sabia
o povo que o Filho do Homem já andava entre eles a cerca de 30 anos, e
pouquíssimos o reconheceram, dentre eles, alguns cegos, exatamente para mostrar
que o real problema da humanidade não é a cegueira física, mas a cegueira
espiritual.
Continuando
com a sua sutil e certeira pedagogia, Jesus faz, então, a pergunta que realmente
interessa: "Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?" (v. 15).
Observe que a associação é imediata: "o Filho do Homem" e quem
"eu sou". Aqui está a primeira lição direta: Jesus é o Filho do
Homem anunciado no Antigo Testamento.
Como
é usual, Pedro sai na frente ao dar a resposta. É peculiar de Pedro adiantar-se
em falar e agir. E a resposta de Pedro é direta: "Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo" (v. 16). A resposta é carregada de conceitos teológicos
fundamentais que são trazidos pelos textos da Lei, dos Salmos e dos Profetas.
Em resumo, Pedro faz uma associação teológica dizendo que o Filho do Homem é o
mesmo Messias, que é o Cristo e que este mesmo é o Filho do Deus vivo, e,
afinal, era este homem que estava diante dos seus próprios olhos na região de
Cesaréia de Filipe. A partir desta realidade, aprendemos alguns importantes
princípios no diálogo que se desenvolve.
Princípio
da Revelação
Na
resposta do diálogo, Jesus mostra, então, o primeiro grande fundamento sobre o
qual a sua igreja está firmada: a iluminação do Espírito Santo sobre a
Revelação, ou como chamarei aqui, o Princípio da Revelação. O Senhor
Jesus diz que não foi carne ou sangue que fizeram Pedro reconhecer esta verdade
revelada nas Escrituras e agora exposta diante de seus próprios olhos, mas o
próprio Deus. Esta é uma das fundamentais diferenças entre o cristianismo e
outras religiões. A revelação que vem da parte de Deus e que corresponde à
realidade dos fatos. Jesus é aquele que a Escritura diz que ele é. Jesus é
aquele que ele mesmo diz ser. Jesus é aquele que Deus diz ser! Temos aqui três
ideias básicas. Primeiro, que a revelação passada se cumpre em Cristo, afinal,
ele é o Messias prometido. Segundo, que a revelação presente, na encarnação do
Filho do Deus vivo, é superior. Não no sentido de que a revelação anteriormente
dada fosse imperfeita, mas agora, ela é completa e plena. Tudo o que Deus quis
revelar, mostrou-nos no seu Filho (Hb 1.3; Jo 1.18). E terceiro, aprendemos que
a iluminação individual é fundamental. O verso 17 nos ensina que Deus revelou a
Pedro esta verdade. Os escribas, fariseus e todos os estudiosos da época tinham
as mesmas fontes que Pedro tinha, mas foi Pedro quem conectou os pontos da
revelação passada com a revelação presente diante dos seus olhos. Esta mesma
verdade é viva hoje quando, pela iluminação do Espírito Santo, percebemos na
Escritura a verdade de Deus. Crer na revelação da Palavra de Deus é uma
bem-aventurança: "Bem-aventurado és, Simão Barjonas". Sobre esta
revelação é que a fé da Igreja deve ser fundamentada.
Princípio
da Edificação
A
resposta de Jesus a Pedro começou com uma troca de palavras: você disse que eu
sou o Cristo, e eu digo, Simão Barjonas (Simão filho de Jonas), que você é
pedra (o significado do apelido de Simão, Pedro). Jesus usa deste trocadilho
para trazer à luz uma das mais importantes verdades a respeito da fé da Igreja:
"Sobre esta pedra edificarei a minha igreja" (v. 18).
O
catolicismo romano imediatamente interpretou o jogo de palavras, Pedro e pedra,
como sendo a mesma palavra e nisto construiu a doutrina do papado, sendo Pedro
o primeiro desta suposta sucessão. Mas há aí uma falácia. Quando Jesus diz
"esta pedra", não refere-se a Pedro, mas à verdade pronunciada por
Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". É sobre esta verdade
que a Igreja irá subsistir, a obra do Filho de Deus. O próprio Pedro,
refletindo sobre esta verdade, fala-nos em sua primeira epístola: "Por
isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular,
eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido" (1Pe 2.6).
A
grande lição aprendida aqui é que a Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada
sobre fundamentos humanos. Sempre que interferimos e nos colocamos no lugar do
fundamento verdadeiro encontramos diante de nós uma igreja falsificada,
trasvestida e irreconhecível como igreja de Cristo.
Princípio
da Propriedade
Da
mesma forma como a igreja não pode ter fundamentos lançados por homens, ela não
pode ter homens como seus proprietários! No final do verso 18, o Senhor Jesus
usa a expressão "minha igreja". A igreja é dele, sua noiva, pela qual
ele tem verdadeiro zelo e compromisso. Com base nesta verdade é que são feitas
muitas promessas à Igreja e a respeito da Igreja, dentre elas, a de que vai ele
apresentá-la sem mancha, ruga ou mácula.
O
Senhor sabe que é necessário cumprir toda a sua obra pela Igreja, para que
possa resgatá-la de forma completa. Por isto mostra aos seus discípulos:
"Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que
lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos,
dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro
dia" (v. 21). Ele diz "minha igreja" porque ele é o único
dono dela, trabalhou até a morte para que pudesse comprá-la com seu sangue e
ninguém mais pudesse clamar posse sobre ela e seus membros. A Igreja de Jesus
não existiria como tal sem a sua morte e ressurreição, o que lhe dá completa
posse dela.
Princípio
da Autoridade
Por
último, podemos perceber o princípio da autoridade de Cristo sobre a sua
Igreja. Para demonstrar este princípio temos, em primeiro lugar, a afirmação
desta autoridade: "E as portas do inferno não prevalecerão contra
ela" (v.18b). O conceito é, de certa forma, muito simples: o fato da
Igreja ter a autoridade da revelação de Deus, ser a propriedade e a edificação
de Cristo, não há nada neste mundo, nem o próprio inferno, que possa se colocar
contra ela e vencer. Assim, a verdadeira Igreja de Cristo não tem o que temer;
não há poderes que possam terminá-la, porque ela pertence a Cristo. Aliás,
opor-se à obra de Cristo na Igreja é obra de Satanás e é por isto que Pedro é
repreendido severamente ao opor-se, quando foi dito que era necessária a morte
e ressureição do Senhor.
Por
outro lado, a verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra.
O Senhor afirma: "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na
terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido
desligado nos céus" (v.19). Veja que o texto é muito claro em dizer que a
ordem da ação de ligar e desligar começa no céu e é implementada na terra pela
Igreja. Acredito que aqui temos o ensino claro, somado ao contexto de Mateus
18.15-18, onde aparece a mesma expressão, que a Igreja tem a obrigação de admitir
e demitir aqueles que não cogitam das coisas de Deus. A Igreja tem a
responsabilidade de abrir e fechar a porta para que as "portas do
inferno" não operem dentro dela mesma. Logo, a Igreja na terra deve viver
na busca de realizar a vontade soberana do Pai do céu.
E
como, afinal, esta fé deve ser vivida aqui na terra?
"Então,
disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se
negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua
vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á. Pois que
aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará
o homem em troca da sua alma? Porque o Filho do Homem há de vir na glória
de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas
obras. Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que
de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no
seu reino" (16.24-28).
O
que o texto nos mostra é que a vida de fé na igreja deve ser vivida em torno da
cruz! É, com certeza, uma vida de negação dos padrões da individualidade
egoísta para viver os padrões da vida do bem-aventurado. Da mesma forma como
era necessário que o Senhor fosse a Jerusalém para passar pela cruz, o cristão
toma a sua cruz e segue a Jesus nos passos da ressurreição.